Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007

DITACOMPOSIÇÃO (agit-prop aplicada a ditadores)

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Quando lemos um profundo conhecedor apaixonado das questões do Médio Oriente, nomeadamente no que toca o longo rol de atrocidades cometidas pelos EUA e Israel naquela região, e também um especialista em geoestratégia, escrever assim sobre Sadam Hussein:

 

“Velho aliado dos EUA, designadamente na guerra contra o Irão. Teve o apoio, muitas vezes a compreensão dos rancheiros texanos, particularmente dos “criadores” de petróleo, incluindo a presidencializada família Bush. Foi responsável por milhares de assassinatos, execuções sumárias, extermínios, boa parte deles com o apoio, o encorajamento, a “compreensão” ou a cumplicidade dos EUA, da Inglaterra, da França et tutti quantti.”

 

Ficamos mais entendidos sobre os caminhos insondáveis das ondas de sombra da propaganda nos subterrâneos da cultura política esclarecida. Porque quando assim acontece com pessoas excelentemente informadas e de alto gabarito intelectual imbuído de princípios éticos e emancipadores, o que esperar dos que fazem da propaganda a permanente justificação da praxis optada?

 

É de facto admirável a vaga que submergiu tantos comentadores que surfam a indignação generalizada para com a corda de forca no pescoço de Sadam, uma indignidade repulsiva em si mesmo e autónoma do pescoço que engravatou, para retocarem as figuras, como Iejov fazia com as fotografias dos líderes caídos em desgraça, caudalizando um objectivo pré-definido. No caso, alimentando com lenha de estereótipos a fogueira do novo-velho anti-imperialismo, o que se quer manter como herança eterna dos tempos do filo-sovietismo, permanecendo como crença de continuidade e confiança nos andaimes da coerência.

 

E, no entanto:

 

Sadam Hussein e o domínio do Partido Baas não são criaturas do imperialismo norte-americano nem da apregoada perfídia judaica feita Estado em Israel. Ao contrário, o projecto Baas de poder (consumado no Iraque e na Síria, replicado em versões mais medievo-tribalistas na Líbia e no Iemen, todos inspirados em Nasser no Egipto), ideologizado como praxis de “socialismo árabe”, teve sempre fortes propósitos anti-imperialistas e bebendo inspiração no “socialismo real” com adaptação iconoclasta ao islamismo (numa primeira linha, contra o domínio inglês e francês, mais o intuito confessado de aniquilar o Estado de Israel). A substância material deste projecto assentaria nos meios libertados pela nacionalização mascarada dos recursos petrolíferos (traduzida, afinal, em elevação das quotas de repartição das fatias lucrativas com as multinacionais petrolíferas) e a imposição de preços mais altos na cotação do crude. Em termos sócio-políticos, a transformação incidiria no reordenamento das estruturas tribais dos domínios central e regionais, a criação de uma numenklatura burocrático-militar-policial com capacidade centralizadora e guardiã de uma nova ordem piramidal, na promoção de projectos de elevação da satisfação das necessidades (saúde, educação, protecção social, habitação, obras públicas), uma laicidade mitigada em que o islamismo se conservava como religião dominante e inspiradora mas os agentes políticos passavam para as mãos de civis e, finalmente, a desmontagem dos principais travões arcaicos ao voluntarismo desenvolvimentista. No campo regional e internacional, o projecto do “socialismo árabe” assentava no conceito da “unidade árabe”, na expulsão de Israel, com a Palestina erigida a “causa central”, e na dinâmica protagonizante do “Movimento dos Não Alinhados” que, tacticamente, repousava num filo-sovietismo anti-imperialista suportado no efeito dissuassor do poderio militar do Pacto de Varsóvia. No fundo, as grandes heresias do “socialismo árabe” relativamente aos dogmas soviéticos sobre a “libertação nacional” reduziam-se à mudança de protagonismo nas transformações, da classe operária e do campesinato que passava para os oficiais das Forças Armadas de patente média e baixa (um género de antecipação do que foi o MFA em Portugal) e que implicava a liquidação, subalternização ou apagamento dos Partidos Comunistas locais e dos Sindicatos, mais a fundamentação legitimadora dos actos revolucionários a ser transferida de tudo quanto Marx e Lenine escreveram para um Corão lido na óptica de um nacionalismo redentor.

 

A crise do Suez em 1956, simultânea com a chacina da revolta húngara ordenada por Krutchov, já com Nasser (o pai e inspirador do “socialismo árabe”) consolidado no poder, havia provocado um efeito complexo e surpreendente no alinhamento das grandes potências no Médio Oriente. Os Estados Unidos e a URSS que, antes, haviam imposto Israel à Inglaterra, conluiem-se de novo na “crise do canal” contra a Inglaterra e a França. E, arredando a influência inglesa e francesa do Próximo e Médio Oriente, abrem caminho não só à sobrevivência de Nasser como à propagação do “socialismo árabe”. Em plena guerra fria, esta duplicação de aliança américo-soviética estava condenada a explodir na competição infra-imperialista. Rapidamente, os EUA se acantonaram nos feudos tradicionais árabes (a Arábia Saudita como praça forte) enquanto os soviéticos, disponíveis para negociarem os seus dogmas e a mudarem de instrumentos, passaram a apoiar em toda a linha o projecto de “socialismo árabe” onde ele se manifestasse, sobretudo no campo do armamento militar e no auxílio às mudanças de estruturas económicas, a apoiarem a causa palestiniana e a colocarem Israel na primeira linha do ódio da esquerda mundial “progressista”.

 

A ascensão do Partido Baas do Iraque (teoricamente, um simples “comando regional” no quadro da “unidade árabe”) deu-se neste quadro e na embalagem de sucessivos golpes militares contra o domínio britânico e pela recomposições das castas e elites dirigentes. A base tinha sido sempre a mesma: o corpo militar sunita (uma minoria privilegiada no Iraque desde os domínios otomano e britânico). A tomada de poder golpista (golpe nos golpes) do Baas ainda foi um compromisso entre parte da velha oficialidade nacionalista e uma nova geração de “baasistas” em que se destacava a capacidade conspirativa e de intriga de Sadam Hussein (dos poucos quadros do Baas que não fizera carreira militar) e que culminou numa dualidade de poder, em que o Presidente nominal era o General Al Bakar e o Vice o homem do aparelho, da intriga e da acção (Sadam). A dupla Suslov-Ponamariov que ditava do Kremlin a geo-estratégia soviética, já com Brejnev no leme do PCUS, foi rápida e clara no alinhamento com o “novo Iraque”, integrando-o no campo das suas alianças prioritárias. O partido Baas passou a “partido irmão” (em lugar do Partido Comunista do Iraque, considerado demasiado heterodoxo) e Sadam Hussein era tratado como um camarada de primeiro nível. Quando Sadam assassinou o seu Presidente (Al Bakar) e tomou conta em exclusivo do poder, depois resolveu liquidar os membros, todos os membros identificados, do Partido Comunista do Iraque (que, antes de serem enforcados, eram ritualmente sodomizados na entrada na prisão) e rompeu os equilíbrios étnicos com instauração da supremacia sunita e a subjugação da maioria xiita e da minoria curda, o Iraque manteve-se e fortaleceu-se como um dos grandes peões da influência soviética na região. Foi assim até à ocorrência praticamente simultânea de dois acontecimentos trágicos e importantes: a invasão do Afeganistão pela URSS em 1979 (onde os soviéticos alimentaram a esperança de construíram um regime marxista puro e absolutamente submisso em território islâmico, um género de “estádio superior” ao do “socialismo árabe”) e a declaração de guerra do Iraque ao Irão em 1980. Sadam percebeu, pelo tratamento dado pela URSS ao Afeganistão, que o apoio soviético lhe era conjuntural até que lhe pudesse ser aplicada a receita do “estádio superior”. Os Estados Unidos, enquanto jogavam a "cartada talliban" contra os soviéticos no Afeganistão, exploraram as ambições desmedidas e aventureiras de Sadam quando este atacou o seu “inimigo principal” na região (o Irão). É neste quadro que ao americanos jogam a “cartada Sadam” e apostam em correr a substituir o apoio soviético, dando-lhe apoio logístico, tecnológico e da CIA, na guerra contra o Irão (etapa que não durou mais de dois anos). Com a derrota empatada em que terminou a guerra Irão-Iraque, que fez o Iraque recuar décadas nos seus poderios militar e económico, para além do milhão de perdas humanas, e a URSS enterrada no pântano afegão e sem vitória à vista, a retórica anti-americana voltou ao Iraque e recompôs-se a aliança soviético-iraquiana que durou até o fim da União Soviética e se prolongou no sucedâneo russo, com hiato durante a invasão do Koweit ordenada por Sadam.

 

Em balanço, olhando para toda a ditadura de Sadam, o apoio imperialista norte-americano ao poder e desmandos de Sadam foi meramente episódico e nunca ultrapassou um apoio parcial no conflito iraquiano-iraniano. Foi a URSS que apoiou a carreira de Sadam no Baas, foi a URSS que consolidou o regime do Baas no Iraque, foi a URSS o maior apoio diplomático internacional do Iraque de Sadam, foi a URSS que treinou e armou as Forças Armadas de Sadam, foi a KGB da URSS que ensinou a tortura à polícia de Sadam e organizou os seus serviços secretos e a sua polícia política, foi a URSS que fechou os olhos à tortura e assassinato dos comunistas iraquianos por Sadam. Como é possível dizer-se, sem um riso escancarado a revelar o comprometimento propagandístico, que Sadam foi “uma criatura dos americanos”?

 

Se Sadam jaz enforcado, ignomínia demasiada, escusada e aviltante, evitem enforcar agora os seus reais “pais políticos”. Pai é pai, amante de ocasião é outra coisa.  

Publicado por João Tunes às 00:39
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De Gil a 2 de Janeiro de 2007
ops! - linkei
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