Entre uma cidade que amei e um ditador que detestei, agora que uma está desfigurada e o outro esticou uma corda de forca, juntando estas duas indignidades e vasculhando no baú das memórias, resta-me o quê? Opto por, simbolicamente, reler um post que coloquei em 6 de Abril de 2004 (rebobinando recordações dos meus tempos de sindicalista internacionalista):
Tive oportunidade de visitar Bagdad, pela primeira vez, vai para aproximadamente vinte e cinco anos. Foi com emoção e deslumbramento que, na chegada, vi os milhares de laranjeiras que decoravam ruas, casas e jardins, bem debaixo da janela do avião já inclinado para rumar à pista.
Laranjeiras omnipresentes por toda a cidade, elas que são árvores decorativas por excelência. Eu, pelo menos, gosto muito. É um regalo que redescubro quando visito uma cidade alentejana. Só que, falando de Bagdad, estamos a falar de uma cidade de muitos hectares e muitos milhões de casas e de habitantes.
Grande parte da cidade é plana, com ruas e avenidas largas, desenhadas em geometrias perfeitas. Entrando para o casco da cidade, pisávamos a velha Bagdad desenhada em círculos concêntricos pontuados por mesquitas decoradas por arabescos fascinantes e bazares onde tudo se vendia, que exalavam todos os cheiros das especiarias e ofereciam panos, cobres e pratas de todas as formas e feitios. As casas ricas apalaçadas lembravam-nos que estávamos na cidade das mil e uma noites. E, depois, tinha um rio bem torneado que dava mais beleza ao conjunto. Desde então, essa memória de Bagdad fê-la entrar no pódio das cidades mais bonitas que conheço.
O nível de vida era muito razoável (vivia-se na euforia dos petrodólares e da subida do preço do crude), sentia-se segurança, movimento, cor, pujança e optimismo. O vestuário era variado mas sentia-se desenvoltura, modernidade e sem os atavismos dos exageros islâmicos.
Na altura, o parque automóvel envergonhava Lisboa, Madrid ou Paris. Todos de boas marcas ocidentais, potentes e quase todos novinhos
Por especial consideração, julgo eu, brindaram-se com um intérprete (um moreno baixo e com o típico bigode iraquiano) que só falava árabe. Imagina-se que a nossa comunicação se reduzia a sorrisos, gestos e salamaleques. Mas, tudo bem. O homem não largava os hóspedes que tinha de guiar como sua função e, assim, era divertido fazer-lhe fintas em escapadelas do hotel, galgar uma avenida em passo largo para acabar de o ver chegar junto de nós, ofegante da corrida de recuperação da companhia. Todos os dias, de manhã cedo, quando descia para o pequeno-almoço, lá tinha o porfiado guia sentado e atento à minha chegada. Fazíamos uns salamaleques efusivos como cumprimentos e eu lá ia matar o jejum sem que o guia me incomodasse o sossego. É que, enquanto eu trincava as torradas e comia os ovos mexidos e a salada de frutas, o meu estimado guia subia ao meu quarto para revistar malas e armários. Rápido, porque o homem já estava no seu posto quando eu saia da sala de refeições. Chamavam-lhe guia mas é claro que não passava de um polícia zeloso. Tão zeloso que, depois das suas revistas, ficava tudo como se o chui por lá não tivesse passado e eu só confirmava a busca, porque tinha os meus truques para detectar mexidelas mesmo que feitas por profissionais. Todo o dia era passado em companhia do prestimoso guia que, coitado, passava a vida a rir-se para ser agradável. Suponho que, após o meu regresso, o homem tenha tirado férias para estar, uns dias, solitário e sem se rir.
Era então o tempo,
Confesso que, na época, não fazia grande nem pequena ideia da peça que o Sadam era. Sabia vagamente que o sujeito era o Vice e bastava-me. O problema foi quando resolveram entrevistar-me para a televisão iraquiana. Já não me lembro bem do tema da entrevista mas devia ser qualquer coisa relacionada com as relações entre países produtores e consumidores de petróleo, etc e tal. Preparei-me para ler a minha cantilena (que escrevera em francês e já tinha sido traduzida para árabe). Tinha sido combinado que eu lia em francês o primeiro e o último parágrafo e um intérprete lia o texto completo em árabe. Fazemos um ensaio de luz e som e rebenta a barracada. Os tipos da televisão impunham que eu começasse a peroração com uma saudação ao Presidente Al Bakar e ao Vice-Presidente Sadam Hussein. Expliquei que, em Portugal, não usávamos dessas coisas. Eu não estava numa missão política e não tinha nada que saudar os governantes. Não podia ser. Teima para cá e para lá. Os tipos da televisão encenam uma descompostura acusando-me de querer ofender o país deles, o povo deles e os presidentes deles e que não estava a agir conforme as regras elementares da boa educação. O intérprete lá ia traduzindo as reprovações que ele ia sublinhando com gestos de indignação. Mau Maria. A coisa começou a ficar preta, eles não desarmavam a tenda, teimavam, teimavam e dali não se saía. Pensei em mandá-los à fava mas desisti de ir por aí. Sabia lá como iria reagir o meu guia e visitante do quarto nas minhas ausências. Resolvi sair-me da embrulhada, propondo um compromisso, meio por meio. Tinha-me habituado a regatear como eles gostam de fazer. Presidente é Presidente, saudava então o tal Al Bakar mas eles tinham de abdicar que eu desejasse longa vida ao Sadam. Ficaram mais verdes que antes. A solução que eu propusera era gravíssima e mais ofensivo era falar só no Al Bakar que não falar em nenhum deles. Foi a hora da minha intransigência, arrumassem a tralha televisiva que eu, no Sadam é que não falava. E fiz um gesto de quem arruma a papeleta no bolso. Os iraquianos pediram uns minutos para parlamentarem entre si e para ali estiveram, intérprete, jornalista, camerman, sonoplasta e luminotécnico, um tempão enorme em que pareciam todos zangados uns com os outros. Em árabe, é claro, e eu sem perceber patavina. Eu já só aspirava que desatassem todas à pêra e me deixassem
Um dia, convidaram-me para visitar o Zoo deles que, diziam era um dos mais valiosos do mundo árabe. Fui, é claro. Esperava ver os animais do sítio mas, é óbvio que um Zoo serve para mostrar os animais de sítios diferentes. Claro que não vi nem camelos nem leões que eles têm para lá aos pontapés. O que havia mais, em quantidade astronómica, era a grande atracção do Zoo de Bagdad: jaulas cheias de porcos. Porcos grandes, porcos pequenos, porcos de todas as cores e feitios. E eram o delírio da pequenada. Tinha-me esquecido que porco é que era raridade exótica em terras do Islão. Foi uma tarde em cheio, a cheirar pocilgas a abarrotar de porcos assustados com o barulho que a criançada fazia.
Voltei a Bagdad nos anos oitenta. Em plena guerra do Iraque com o Irão. A cidade tinha-se degradado, a alegria tinha desaparecido dos rostos e dado lugar a desconfiança nos contactos, os discursos eram estereotipados e os bens escassos. Até as laranjeiras pareciam tristes. E voltei a tropeçar no Sadam Hussein. Estava sossegado no meu local de congressista ocioso, quando, repentinamente há um burburinho do camandro, os iraquianos ficam todos nervosos e a correrem de um lado para o outro. Assustei-me. Ali devia haver caso e coisa grossa. Querem lá ver que os iranianos andavam a mandar mísseis para dentro de Bagdad? Saímos todos em cordões de segurança compostos por chuis à civil (montes de chuis) e os do Parido (montes de tipos do Partido) com as suas fardas verde oliva e fomos todos enfiados rapidamente para dentro de autocarros. A viagem em procissão de autocarros seguiu, atravessando toda a Bagdad. Ninguém sabia ou percebia o que se passava mas um australiano acalmou-nos aventando que nos deviam ir enfiar num abrigo subterrâneo para proteger as nossas vidas. Antes isso. Se a coisa estava feia, viesse lá esse abrigo o mais rápido possível. Mas a viagem parecia não ter fim e era fácil constatar que andávamos às voltas repetidas pela cidade. Foram voltas e mais voltas. Pensei: mas para mostrarem a cidade era preciso tanto cagarim? A viagem terminou dentro do Palácio Presidencial. Fizeram-nos um controlo policial personalizado (apalpadelas, raios x, etc) e enfiaram-nos num auditório todo cheio de rocócós. Ali estivemos mais de meia hora, a beber sumos de laranja que tipos do Partido iam servindo, a olhar para aquilo que parecia a frente de um palco com as cortinas fechadas. À espera de quê, ninguém sabia porque o silêncio era pesadíssimo, os rostos dos polícias estavam mais que sérios e ninguém se atreveu a pedir explicação porque é que estávamos ali sentados. Às tantas, o pano do palco abriu-se e só se viu uma secretária vazia no meio da cena. De repente, uma grande restolhada, o palco foi invadido por uma data de tipos com péssimo aspecto, de armas na mão e ocupando posições estratégicas na boca de cena. Aquilo estava a ficar para o pesado. Às tantas entra o Presidente Sadam Hussein, com sorriso de plástico, acenou-nos e sentou-se à secretária no palco com dois guarda-costas postados onde devem estar (nas costas do Presidente). Então era isso, tínhamos ido visitar o figurão. Confirmar que aquela raridade estava viva, de bom aspecto e melhor disposiçao. Lembrei-me do zoo de Bagdad, mas não me atrevi a rir alto. A solenidade pesava como chumbo. Às tantas, um palestiniano levanta-se no meio da assistência e recita alto (ouvida em tradução simultânea) elogios repetidos ao génio de Sadam e que estávamos ali todos para lhe desejar saúde e sucesso. Tudo em nosso nome. O mistério estava deslindado, segundo a versão oficial. Tínhamos sido nós que nos tínhamos metido voluntariamente dentro de autocarros e corrido ao palácio presidencial para cumprimentar o Presidente e apoiá-lo. (ninguém sabia como é que o raio do palestiniano obteve mandato para falar em nosso nome, mas isso era um pormenor). Com as televisões a darem em directo, o Sadam, ia agradecendo, enfadado, os nossos elogios e os nossos votos com assentos de cabeça. A paródia terminou com o Sadam a prometer que tudo faria para merecer a nossa confiança, dando cabo dos iranianos. E desejou-nos bom regresso às pátrias e casas de cada um. E voltámos aos nossos trabalhos congressistas, como se nada se tivesse passado.
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