O centenário solenemente comemorado do nascimento de Spínola revive-me um pesadelo plantado na minha memória e que, assim, mais teima em não me largar. A figura deste militar ególatra e apalhaçado na sua imitação grotesca dos aristocratas militaristas prussianos que foram a guarda de honra de Bismark e depois constituíram o tecido elitista da Wehrmacht ao serviço de Hitler, como se Spínola não passasse de um imitador menor e lusitano das geniais caricaturas fílmicas de Erich von Stroheim (vejam-se as semelhanças na imagem acima), persegue-me desde 1969. Foi em Maio desse ano, tendo eu desembarcado fardado na Guiné do “Niassa” e com galões de alferes miliciano metidos nos ombros, que o encontrei como meu comandante-chefe, passando revista às tropas e discursando de cima de um palanque com a sua oração cheia de pausas e acentos sonoros, estereotipado no apelo ao serviço da pátria colonial, apresentando-se-nos como “um soldado como vós”. Depois, durante a comissão militar, haveria de o encontrar mais vezes, sempre metido no seu camuflado engomado e de mangas curtas, de luvas e pingalim, monóculo a enfeitar um olho, beiços grossos espetados, na sua típica e representada postura monocórdica de cabo de guerra, como se esta fosse uma ópera trágica, com mortos e estropiados reais arrancados à juventude da época, a que Spínola não dispensava dar um permanente tom revisteiro e nazistóide. Para os seus seguidores, Spínola era o “Velho”, cognome de culto à sua pretensa sabedoria guerreira. Para nós, tropa de carne para canhão, ele era um actor do regime e da guerra colonial, o “Caco Baldé”, uma alcunha que juntava o grotesco da encenação da vaidade prussiana mascarada no olho direito com a sua encenação cafrealizada do projecto da demagogia psico-social da “Guiné Melhor”, com que pretendia corromper os guineenses, desviando-os da aspiração à dignidade e à independência. Pela sua aparição súbita e sinistra à frente da Junta de Salvação Nacional no dia seguinte ao 25 de Abril de 1974, adicionei a confirmação de que a figura do “Caco” não me ia largar tão cedo. E assim continuou a ser. A mandar, a recuar, a travar, a conspirar, a comandar golpes e grupos de bombistas assassinos. O general descera ao nível dos pistoleiros, como se a sua velha convicção fascista o marcasse como um destino político. Mário Soares, fiel cumpridor de dívidas de cumplicidades da contra-revolução conveniente, recuperou-o pelo esquecimento dos desmandos e crimes, dando-lhe honrarias de verniz de fim de carreira e de vida, com direito a bastão de marechal e comando da comissão de distribuição de medalhas, ordens e comendas. O nazi, o cabo de guerra, o presidente, o bombista, terminou os seus dias beneficiando da paz harmónica concedida pela benevolência democrática. Como se a memória pudesse sobreviver com apagões sobre as partes sinistras que habitam os pesadelos dos povos. Agora, decorridos cem anos sobre a data do seu nascimento, deram-lhe nome de avenida em Lisboa, com altas personalidades (incluindo o inevitável Cavaco e o volúvel Costa) a vomitarem elogios - estúpidos na ignorância e na omissão - ao “Caco”.
Se é sina e não me livro da omnipresença do “Caco”, esse pesadelo sinistro que me acompanha desde 1969, resta-me o consolo de que a história não existe sem historiadores. E, assim, afogo o nojo para com tantos políticos que se penduram na absolvição da amnésia e na leviandade com que plantam santos e heróis, recomendando vivamente a leitura do excelente livro do historiador Luís Nuno Rodrigues acabado de editar sobre a figura, obra e feitos de Spínola (*). Felizmente, há quem não deixe que a mentira, o incenso e a mirra triunfem sobre os factos passados em que cómico-trágicos nos infernizaram em vida e, agora, outros prolongam, em sua honra imerecida, ferrando-os na nossa memória colectiva.
(*) – “Spínola”, Luís Nuno Rodrigues, Editora “Esfera dos Livros”.
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