Porque a verdade é que aquilo que aqui está em causa e compromete a hierarquia da Igreja e o seu monarca é a adopção, por razões de Estado, de uma atitude de encobrimento activo de crimes, que são também faltas graves aos olhos da doutrina romana, e dos seus autores, que foram mantidos nos seus postos e protegidos para além de todos os limites razoáveis. A hierarquia revelou bem assim que é um poder discricionário - de soberano ad legibus solutus - aquele que reclama e se julga autorizada a usar. O "esplendor da verdade" de que se afirma portadora em termos superiores e exclusivos legitima pois, na razão de Estado ou de Igreja da hierarquia, a suspensão da validade das leis cuja imposição a Santa Sé defende e consagra.
O que está aqui em jogo é uma concepção política que faz primar os direitos superiores, de origem divina, consagrados por um bem supremo, sobre as leis civilmente instituídas na cidade humana.
Trata-se da concepção que define o paradigma mais activo do imaginário hierárquico e antidemocrático: aos detentores da verdade revelada, os conhecedores científicos das leis da natureza, da história ou da racionalidade económica, compete ditar a lei da cidade, e impô-la à multidão dos demais, pela persuasão ou pela violência. E acresce que nem mesmo essa lei que ditam - a Igreja ou o Partido - os vincula, porque, para todos os efeitos práticos, o seu poder disso os dispensa, ou lhes permite ajuizar da oportunidade da aplicação dos seus próprios preceitos, em função dos interesses superiores da ordem estabelecida ou a estabelecer e da salvaguarda da autoridade dos seus agentes.
(Miguel Serras Pereira, aqui)
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