
O artigo, que considero muito honesto, do padre e professor Anselmo Borges no DN, sobre a pedofilia na Igreja, teve um impacto que a Joana Lopes estranhou por o achar desproporcionado. Entre espantos e apelos à moderação no entusiasmo, Miguel Serras Pereira (MSP) editou um excelente texto que reencaminha a discussão para as veredas da relação do papado com as práticas de poder. É uma reflexão rica de conteúdo e a merecer discussão à altura dos seus méritos. Outros, com os devidos talentos, o farão, estou certo. Pela parte que me toca, se me convence o articulado da denúncia de MSP sobre os objectivos da hegemonia papal (que é anterior ao actual Papa) sobre as sociedades, os seus costumes e as suas leis, não evito a prevenção sobre a aplicação, pelo autor, da regra da recomendação da concentração na “questão central”, velho arquétipo que é típico da esquerda mais politizada. O escândalo da pedofilia e outros abusos na Igreja Católica, mais a prática contumaz da hierarquia clerical em os encobrir, cuja porta apenas se entreabriu, se não são o cerne da questão do poder do Vaticano e a ambição desmedida deste em o ampliar, a tal “questão central”, muito explicam quanto à amplitude e à impunidade das práticas criminosas (sexuais, agressões físicas e psicológicas sob a forma de castigos corporais "educativos") cometidas por muitos membros do clero católico. Mas as práticas pedófilas dos clérigos (que, convém não esquecer, não são “questões internas” da “família católica”, mas sim crimes, e hediondos, cometidos contra “a sociedade”) se são abusos proporcionados e encobertos pelo poder católico, resultam de uma sexualidade perversa e multiplicadora de taras. Para o que ajudam, e muito, o culto mariano, a obrigação do celibato para os sacerdotes, a interdição do acesso das mulheres ao sacerdócio. Já aqui o referi e ainda não me convenceram do contrário.
Se o li bem, MSP como que lamenta que a intensidade da denúncia dos crimes de pedofilia na Igreja Católica esteja a desviar as denúncias do cerne (da “questão central”) da interferência do poder papal sobre o desenvolvimento das sociedades democráticas. Não vejo como seja assim. A pedofilia recorrente e encoberta na Igreja, estando para saber se ela é regra ou excepção (quando se expuser a vida interna nos seminários, saberemos mais sobre o assunto), a face mais negra da miséria sexual catolicista, talvez seja mais causa que efeito de exercício e ambição de expansão do poder clerical, nomeadamente na sua tendência a pautar a moral e a sexualidade de todas as sociedades onde têm influência pública, ideológica e política. Um bando de castrados, tarados e pedófilos, com inclusão das excepções de alguns santos e santas que lhes sobrem, tende, naturalmente, a impedir a realização e a libertação da sexualidade onde e em quem influenciem. Para que as suas anormalidades (e os seus crimes de abuso) sejam mais “normais”. Onde está, afinal, a “questão central”? Ou serão, como eu entendo, várias e entrosadas e todas a considerar no mesmo nível de importância?
Nem acho que esta denúncia da pedofilia desvie as atenções (como já disse ao MSP, em resposta a comentários ao meu post), nem me parece que seja «causa»l da expansão do poder clerical, como pareces defender.
Lá mais para a noite, escreverei mais sobre este assunto que, como calculas, me é especialmente caro.
Eu espero pela tua argumentação. Mas ansioso, como é meu costume sempre que te anuncias.
Nem é bem argumentação - é outra coisa. Mas já está.
Pois, é mais autobiografia. E essa não discuto.
De miguel serras pereira a 30 de Março de 2010
Caro João Tunes,
não era minha intenção desvalorizar a questão da pedofilia em si própria - devo ter-me explicado mal, à força de querer insistir noutros aspectos e tentar levantar a questão religiosa, tal como com ela se confronta a acção democrática actual. Assinalo ou quis assinalar também como o modo de reagir, não dos acusados individuais, mas da hierarquia católica mobiliza uma concepção do poder que exclui a isonomia - ou igualdade democrática tanto em relação à aplicação da lei como no que se refere à competência da sua adopção e edição. Por fim, insisto em que as organizações que adoptam o paradigma hierárquico legitimado pela revelação ou pelo acesso privilegiado à verdade daqueles que são nomeados governantes ou pastores dos outros são um meio que tende a garantir a esses mesmos pastores e governantes uma impunidade e meios de dissimulação que os distinguem do comum dos mortais. E, de acordo consigo na generalidade da abordagem que propõe, continuo a pensar que o escândalo da pedofilia nos deve levar a denunciar, ao mesmo tempo que condenamos os abusos concretamente cometidos, o abuso e a usurpação que do ponto de vista democrático é a relação de excepção e superioridade que a Igreja reivindica perante a lei comum (quer no sentido passivo: estatuto especial que viola o princípio da igualdade perante lei; quer no sentido activo: estatuto privilegiado, com direito de veto e magistério à parte, etc., visando impedir a democratização dos processos de deliberação e decisão da(s) lei(s) pelos cidadãos que vinculam).
Democrático abraço
msp
Caro Miguel Serras Pereira,
Estaremos de acordo com os "essenciais" mas apenas talvez não tanto quanto a "prioridades". Lembrando-me das lutas e mudanças no advir, e desculpe se errar ao dar um sinal indevido de contemporaneidade às nossas experiências, é velha e renha a querela sobre as prevalências nos ritmos entre as mudanças políticas e as comportamentais, a política e a sexualidade. E, por isso, não queria voltar a ela. Seria serôdia a tentação de voltar a meter a Kolontai a discutir com Vladimir, porque, na polémica, este estava diminuído enquanto prisioneiro de uma relação formal e dessexualizada com a Krupskaya, prisioneira da sua doença da gota, valendo-lhe, para ganhar e marginalizar a Kolontai, o efeito da hierarquia bolchevique. Ou, domesticamente, lembrar que o impacto e efeito da recuada "carta às jovens portuguesas" do Marinha de Campos teve mais efeitos de mudança social (e política!) que o panfleto mais bem redigido, na exacta medida em que libertou muitas mulheres para a vida e a acção. De um ponto de vista estratégico, claro que lhe dou razão, a mesma que mereceu Lenine na sua altura de sucesso na prioridade da arrumação de classes do poder bolchevique emergente. Mas, do ponto de vista táctico, agora que temos os clérigos encostados às cordas, na defensiva, sob o peso da vergonha da ignomínia acumulada a revelar-se, vamos dizer que "não se desviem as atenções" da questão central do exercício do poder papal? Finalmente, há crimes graves e revelados, por acção e encobrimento. E têm, já, de pagar por eles.
Abraço laico e republicano, talvez até socialista.
De miguel serras pereira a 30 de Março de 2010
Caro João Tunes,
não sei se podemos clivar tão rigidamente táctica e estratégia, e nem sequer se é desejável mantermos essa dicotomia. Mas esta discussão - que é a dos fins e dos meios - ficará para outra altura.
Dito isto, mais do que a existência de casos de pedofilia implicando sacerdotes, importa-me denunciar a protecção legal/ilegal de que beneficiaram, a atitude da Igreja de Roma encobrindo os seus ministros, a maneira como transforma numa campanha contra os crentes a divulgação dos abusos e desmandos cometidos pelos representantes do "esplendor da verdade". E importa-me sublinhar o que tudo isto representa em termos de concepções e práticas que definem um paradigma da legitimidade do poder nos antípodas da liberdade e da igualdade democráticas. A organização eclesiástica é volens nolens - mas mais volens do que nolens - um modelo de sociedade, um paradigma institucional, e isso é um aspecto decisivo que a eclosão do escândalo que nos ocupa demonstrou à evidência. É isso que os factos indicam e ilustram e não que a hierarquia católica romana aprove a pedofilia ou a tenha adoptado como protocolo secreto enquanto prega a pureza de costumes…
Estarei muito enganado?
Um abraço
msp
Caro Miguel Serras Pereira,
A definição de prioridades (e de oportunidades, já agora) não implica dicotomias. Fico-me com esta última discordância. Percebi o seu raciocínio, agora melhor, no que lhe agradeço.
Saudo-o com estima e amizade.
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