Pertinho de meio século tem esta foto vinda do baú dos meus anos verdes escolares. Foi tirada na já então velhíssima Escola Industrial Fonseca Benevides (Santos, Lisboa) que, contra a decadência do edifício e da época então salazarista (por ser escola industrial e contemplar um curso de química tinha uma forte componente de alunas, o que levava a que a cantina tivesse duas alas de comensais devidamente controladas na fronteira, uma para as raparigas que se queriam prendadas e passivas e uma outra para os moços que se queriam lusitos valentes mas castos), contava com, pelo menos, uma tríade de magníficos e marcantes professores. Desde logo, o sempre insuficientemente venerado Salvado Sampaio, notável professor de história, grande cívico, pedagogo e sindicalista e uma das almas fundadoras e inspiradoras da Fenprof (quando esta ainda não estava entregue à liderança indigente e compulsiva da patologia sindical e anarco-estalinista do Nogueira, um medíocre escuteiro sénior de olhos arremelgados parecendo, sempre que fala, que acabou de consumir a dose diária de heroína ideológica e salvífica). Ele, Salvado Sampaio, era a autoridade, a bonomia e a inspiração, o Mestre que ficou inesquecível para quem o conheceu (dediquei-lhe este post perante a notícia do seu desaparecimento). Mas o Mestre tinha, na Fonseca Benevides, discípulos à sua altura. Começando pela adorável Matilde Rosa Araújo, óptima escritora e professora de Português, mulher de ternura infinita, centrada - como não podia deixar de ser e se não esquecermos que o coração é sal em qualquer poema escrito ou não - na poesia de Sebastião da Gama, que desafiava todos os seus alunos a escreverem mas escrevendo bem. E o então jovem arquitecto irrequieto desafiador dos conformismos da época, um talentoso dramaturgo vanguardista, o Augusto Sobral, que ali nos ensinava a passarmos do gatafunho para o desenho mas que, ao menor pretexto, desviava os temas das aulas para passarmos do trato sobre a perfeição dos traços traçados para discussões sobre literatura, sobretudo a riscada pelo lápis azul da época. Estão os três neste retrato e, nele, ficaram todos bem, ao lado de mais uns profs insignificantes que os há em todos os lugares, até nas ruas com bandeira na mão e a vomitarem avaliações indigestas. Como também bem ficaram os alunos-discípulos, incluindo-me no grupo varonil, que desaguados num ensino destinado a produzir uma aristocracia proleta de assalariados especializados, com ambições de carreira reduzidas às paredes e tetos de uma fábrica, fosse numa oficina ou dentro de um laboratório, perante tais mestres inspiradores, fanatizados e sofisticados no amor à história e à literatura, ganharam sobretudo gostos pela leitura e pela escrita, mais além que uma afirmação reduzida e chã, embora honrada, como afinadores de máquinas ou reprodutores de resultados por análises químicas. Nesta tribo escolar, nenhum dos três mancebos fixados pela câmara era bonito para se ver, culpa da natureza que assim nos fez e depois nos juntou na caquética Fonseca Benevides. Mas as fealdades machas daquela turma eram compensadas pelas companhias femininas que anulavam o défice estético e de alegria da minúscula e diluída mancha de androceus intrusos e inestéticos entre uma dezena de beldades próprias da alvorada da década de sessenta do século findo.
Exceptuando a colega com quem me casei mais tarde e é a mãe da minha filha mais velha, perdi o rasto à maioria dos retratados, dos mestres e discípulos, os figurantes neste retrato. Relativamente a grande parte da maioria, não voltei, neste meio século passado, sequer a voltar a pôr-lhes a vista da nostalgia em cima. O que não impede reencontros não previstos (abençoada internet). Como o agora havido com uma destas colegas de escola e retrato e que, passados quase cinquenta anos, despoletado por um post que acumula três anos de edição, enviando-me, por mail contaminado pela ternura decantada por meio século sem me aturar, este verbete indulgente de reencontro através da memória: “Pois também me lembro bem de ti, no meio daquela turma fazias a diferença: discurso solto, culto e inteligente.”
O que me dá uma dimensão, fazendo-lhe preito de sinceridade, mais que o olhar narcísico perante o espelho de vaidade, fim de post, sobre as toneladas de atributos, insuspeitos ou desaparecidos em combate na carcaça humana que hoje me resta, e que a vida me fez perder, desperdiçando-os, pelo caminho, feito andando e, sobretudo, tropeçando.
De Jorge Conceição a 8 de Fevereiro de 2010
Posso dar a pista dum dos citados, a do Arqº Augusto Sobral, meu amigo e ex-colega da ANA, donde ambos estamos reformados. Acabou de ser publicado o seu 2º livro com peças de teatro da sua autoria. Deixando-se ele arrastar actualmente por uma grande tristeza, recomendava-lhe a si o reatamento do convívio passado, atenuando-lhe assim um pouco a solidão em que mergulhou.
Não sei se um solitário tem capacidade de dar consolo a outro solitário. Admitamos que sim, porque nada é impossível. Mas, nestas coisas como em tudo, é preciso fazer acontecer. Por mim, tenho uma reserva de ternura disponível para rever uma pessoa que estimo na minha boa memória. Mas vc assumiu aqui uma responsabilidade de que tem de se desenrascar. E das três uma: 1) dá-me meios de eu chegar à fala com o Augusto Sobral (mail, tm, o que seja); 2) indica-lhe o meu mail publicitado neste blogue; 3) (hipótese preferível por mim mas não imposta) faz convocatória de almoço ou jantar em qualquer ringue gastronómico em que nos reunamos os três (eu, com esta, matava três coelhos de uma só cajadada: comia e bebia bem, sem olhar à bolsa desvalorizada de três reformados, à pala das suas boas escolhas quanto a sítio com bons recheios - os sólidos e os liquidos - em cima de uma toalha de mesa; reencontrava o Augusto Sobral, dando-lhe o abraço da solidariedade dos solitários; tinha, como sobremesa, o prazer demasiado adiado de o conhecer, a si, pessoalmente). Assuma as suas responsabilidades já que se deu ao labor louvável de "casamenteiro" de memórias tresmalhadas. Escolha e ataque, se é homem.
Abraço.
De Jorge Conceição a 9 de Fevereiro de 2010
Pois destes desafios até gosto e não os recuso! Por isso desde já assumo o compromisso de concretizar o sugerido "tête-à-tête"! Só peço: aguarde, por favor, notícias minhas!
Tem todo o tempo do mundo. Sou um impaciente controlado. Mas, se não se importa, use o mail para futuros episódios.
De
mdsol a 8 de Fevereiro de 2010
:)))
De Mário Carvalho a 6 de Março de 2010
Olá boa tarde,
Li com atenção a referência que faz à escola Fonseca Benevides e gostei de saber que a escritora Matilde Rosa Araujo tinha sido professora na nossa escola.
Eu tenho agora 50 anos e entrei para a escola em 1973 em Alcantara, presumo que o senhor já teria saido, não conheci o prof. Salvado Sampaio mas lembro-me de se falar nele pelas melhores razões.
Existe um grupo no facebook, da escola, que agora está a começar, tomei a liberdade (abusiva?) de copiar a foto deste seu post para a colocar no álbum de fotos de lá, se tiver algo contra retirála-ei de imediato.
Os meus cumprimentos
Mário Carvalho
Nada abusiva, esteja à vontade. Antes, considere que tomo como uma honra.
Saudações.
De Maria José Pereira a 13 de Junho de 2012
Há já muito tempo que procuro através do Google , informações sobre a Escola Fonseca Benevides, da qual fiz parte como aluna a partir de 1971.Sou de Cabo Verde, e frequentei nessa Escola o Curso Geral de Química e a seguir o Complementar de Quimico-Tecnia Laboratorial.Tenho 54 anos, e tenho tantas recordações desse tempo, de alguns colegas e professores.Lembro-me que a Escola situava-se em Santos o Velho, e estava já muito decadente.Gostaria de partilhar esta minha fase da vida com pessoas que por lá passaram, e que certamente guardam recordações várias desse tempo.
De Abilio Pires a 26 de Fevereiro de 2013
Caros colegas,
Eu também fui aluno dessa escola velhinha!
Foi ali que aprendo o abc da qumica que me haveria de guiar nos meus estudos superiores e em toda a vida profissional.
Obrigado a todos os que me ensinaram o que sei hoje.
A Matilde Rosa Araújo também foi minha professora de Português!
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