Há uns tempos atrás li (aqui) um texto ímpar e deveras interessante de João Freitas Branco (JFB) sobre a RDA. A assinatura do post, oriunda, desde logo, de quem viveu, estudando, licenciando-se e trabalhando, durante vários anos na RDA, comportava a autoridade do “viver por dentro”. A que acrescia um posicionamento inevitavelmente afectivo dedutível por o autor ser filho de um homem notabilíssimo que, tendo sido das personalidades mais ilustres no contributo que deu à cultura musical portuguesa, à defesa da música e da sua execução e divulgação e como pedagogo no apuramento do gosto musical, além da sua intervenção cívica recheada de actos de coragem, foi um indefectível amigo do regime da RDA e aqui propagandista maior do regime dirigido por Honecker (Luís de Freitas Branco foi presidente da “Associação de Amizade Portugal-RDA” entre 1977 e 1981 e tão porfiado e exitoso foi nesta tarefa que mereceu da ditadura comunista da RDA a honra de ser condecorado com a “Medalha de Mérito pela Amizade dos Povos” com que Honecker engalanava o peito dos melhores propagandistas da RDA no Ocidente). Finalmente, mas talvez o mais importante, JFB, um filósofo com obra feita e publicada, é insuspeito de estar afectado pela pandemia do estalinismo (ou, se preferirem, do dogmatismo marxista-leninista), não só porque é um dissidente do PCP como, na luta orgânica e ideológica da dissidência da “terceira via” em que participou (final dos anos 80), foi então autor de textos dos mais acutilantes e escalpelizantes sobre o fechar cunhalista contra a renovação e a democracia que permitissem ao PCP ser um partido com futuro, sendo, assim, insuspeito de praticar fretes à actual direcção neo-estalinista do comunismo português sobrevivente.
A tese de JFB, num texto de leitura incontornável, exótica na forma hábil e criativa como “cortou a cebola” da RDA (separando a “parte podre” da “parte boa”), foi uma espécie de dissonância nos coros alinhados que, festejando ou chorando os vinte anos passados sobre a queda do Muro de Berlim, ou realçavam a queda de uma ditadura putrefacta, abjecta e grotesca ou, no outro lado da trincheira, se remoíam nostalgias e ressentimentos pela falta do “socialismo real”. Com um discurso de oratória fluida e sedutora, JFB constrói um “viaduto” entre as duas “metades da cebola”, claríssimo na denúncia enojada da ausência de liberdade no regime da RDA e nas suas degradações ditatoriais, mas clamando pelas virtudes sociais, proteccionistas e igualitárias proporcionadas pelo mesmo regime e que JFB arriscou, com coragem de assinalar, apresentar como farol inspirador face às iniquidades das desigualdades capitalistas. Teríamos tido então, na RDA mas provavelmente extensível ao restante campo do “socialismo real”, uma espécie de regime híbrido (e dúplice), reprimindo as liberdades, os direitos cívicos e humanos e as aspirações à democracia, mas garantindo para todos “segurança, trabalho, pão e habitação”, numa alquimia política de mistura do melhor e do pior expectáveis dos sistemas políticos (e com uma espécie de equivalência simétrica na história da propaganda neo-liberal que aponta o Chile de Pinochet como censurável quanto à sua natureza ditatorial mas um exemplo de aplicação de boas soluções capitalistas que levaram a altos índices de crescimento económico).
A tese de JFB, numa primeira leitura, é naturalmente simpática e entusiasmante para quem vive em democracia capitalista, como é o caso do nosso burgo pátrio. Porque, permitindo o consolo dado pelo prazer de se viver em liberdade e democracia, privilegiados portanto relativamente à experiência dos alemães que foram cidadãos prisioneiros da RDA (“metade podre” da “cebola RDA”), nos dá a noção palpável de que é possível, e sendo-o é também desejável, alcançarmos, se por isso lutarmos, os padrões de justiça social que os reprimidos alemães do leste dispunham e que, hoje, sustenta, inclusive, uma assinalável “este-nostalgia” (“metade sã” da “cebola RDA”). E quem de esquerda não entende como inseparáveis a democracia política e a democracia social? Alvo garantido, separadas as setas rombas das setas aferidas, faltou a JFB demonstrar a sustentabilidade, a realidade de suporte, da “metade” da RDA salva. Ou seja, o que sustentava a “justiça social” mantida num regime tirânico? Naturalmente não se distribuindo o que não se tem, o regime da RDA para funcionar bem socialmente de forma consistente tinha de ter um suporte económico e financeiro equilibrado e sustentado. Ficando-me esta dúvida elementar, não encontrando resposta no excelente texto de JFB, fui encontrar outra fonte de esclarecimento. Encontrei-a num livro que recentemente aqui referi. Escreve Victor Sebestyen:
“(…) Krenz [o sucessor de Honecker após o golpe palaciano que destituiu Honecker já em pleno estertor do regime] ficou a par da verdadeira dimensão da catastrófica situação financeira em que Honecker tinha deixado o país. Todos os dirigentes desconheciam os factos, à excepção de Günter Mittag (o czar das finanças do regime), do financista Alexander Schalck-Golodkwski, do director da Stasi Erich Mielke e de Gerhard Schürer, o director do planeamento estatal da RDA. Mas agora a restante direcção do Partido foi informada e o choque foi mais do que óbvio: a bancarrota do país era mais que certa. A Alemanha de Leste não tinha dinheiro suficiente para pagar os juros dos empréstimos estrangeiros e o mais provável era incorrer em incumprimento. Schürer apresentou então aos dirigentes do Partido um “Relatório sobre a Situação Económica da RDA e Respectivas Consequências”, em que revelava os números verdadeiros das contas nacionais. Em Maio desse ano, Schürer tinha tentado convencer Honecker a pensar seriamente na crise de endividamento, «senão vamos ficar insolventes» em breve. Mas Honecker recusara-se a confrontar essa situação, dizendo que o momento não era oportuno. E tanto ele como Mielke disseram a Schürer para «manter aquela situação em segredo». Schürer guardou segredo, como lhe tinham ordenado, mas agora tinha-se insurgido e declarou que o país já estava na verdade insolvente.”
“Toda a propaganda sobre o êxito da RDA baseava-se em mentiras, dizia o relatório. A realidade nua e crua era que, sob o «socialismo existente», quase 60% da base industrial da RDA não passava de sucata e que a produtividade nas fábricas e minas estava quase 50% abaixo da produtividade ocidental. Mas o facto mais grave era que nos últimos quinze anos o endividamento tinha dodecuplicado, num total de cento e vinte e três mil milhões de marcos e continuava a subir cerca de dez mil milhões ao ano - «um montante extraordinariamente alto para um país como a RDA», disse Schürer. Referiu ainda os logros legais usados para ocultar tais factos dos governos e dos bancos ocidentais, bem como os empréstimos a curto prazo em que o país incorrera para pagar os juros dos créditos a longo prazo. Se os mercados financeiros se apercebessem de como a RDA estava a mentir descaradamente sobre os seus activos, os empréstimos ocidentais cessariam imediatamente. Era talvez demasiado tarde para o país parar de contrair empréstimos. Schürer disse ainda que a situação financeira não teria sido tão desastrosa se tivessem sido tomadas medidas radicais para reduzir o endividamento há cinco anos. Mas agora a situação estava totalmente descontrolada. «Só a simples medida de evitar mais endividamento implicaria uma descida dos padrões de vida em cerca de 25% a 30% no próximo ano, o que tornaria a RDA ingovernável.»”
“Krenz e os outros dirigentes ficaram horrorizados com estas informações. As suas hipóteses de sobrevivência política eram mais do que escassas. Ou até mesmo nulas, se uma das primeiras acções fosse o anúncio de penosas medidas de austeridade.”
Em que ficamos? Segundo Sebestyen, a “metade boa” da “cebola RDA” era adubada numa aldeia Potenkine à moda germânica. Seria? Mas talvez o problema esteja nos arquivos, nos acessíveis. E na RDA, por azar, nem para todos os documentos houve tempo suficiente para triturar ou queimar. E para o que restou, os investigadores pecam sempre pelo zelo da curiosidade.