Quinta-feira, 28 de Janeiro de 2010

Uma Cebola Potenkine

 

Há uns tempos atrás li (aqui) um texto ímpar e deveras interessante de João Freitas Branco (JFB) sobre a RDA. A assinatura do post, oriunda, desde logo, de quem viveu, estudando, licenciando-se e trabalhando, durante vários anos na RDA, comportava a autoridade do “viver por dentro”. A que acrescia um posicionamento inevitavelmente afectivo dedutível por o autor ser filho de um homem notabilíssimo que, tendo sido das personalidades mais ilustres no contributo que deu à cultura musical portuguesa, à defesa da música e da sua execução e divulgação e como pedagogo no apuramento do gosto musical, além da sua intervenção cívica recheada de actos de coragem, foi um indefectível amigo do regime da RDA e aqui propagandista maior do regime dirigido por Honecker (Luís de Freitas Branco foi presidente da “Associação de Amizade Portugal-RDA” entre 1977 e 1981 e tão porfiado e exitoso foi nesta tarefa que mereceu da ditadura comunista da RDA a honra de ser condecorado com a “Medalha de Mérito pela Amizade dos Povos” com que Honecker engalanava o peito dos melhores propagandistas da RDA no Ocidente). Finalmente, mas talvez o mais importante, JFB, um filósofo com obra feita e publicada, é insuspeito de estar afectado pela pandemia do estalinismo (ou, se preferirem, do dogmatismo marxista-leninista), não só porque é um dissidente do PCP como, na luta orgânica e ideológica da dissidência da “terceira via” em que participou (final dos anos 80), foi então autor de textos dos mais acutilantes e escalpelizantes sobre o fechar cunhalista contra a renovação e a democracia que permitissem ao PCP ser um partido com futuro, sendo, assim, insuspeito de praticar fretes à actual direcção neo-estalinista do comunismo português sobrevivente.
 
A tese de JFB, num texto de leitura incontornável, exótica na forma hábil e criativa como “cortou a cebola” da RDA (separando a “parte podre” da “parte boa”), foi uma espécie de dissonância nos coros alinhados que, festejando ou chorando os vinte anos passados sobre a queda do Muro de Berlim, ou realçavam a queda de uma ditadura putrefacta, abjecta e grotesca ou, no outro lado da trincheira, se remoíam nostalgias e ressentimentos pela falta do “socialismo real”. Com um discurso de oratória fluida e sedutora, JFB constrói um “viaduto” entre as duas “metades da cebola”, claríssimo na denúncia enojada da ausência de liberdade no regime da RDA e nas suas degradações ditatoriais, mas clamando pelas virtudes sociais, proteccionistas e igualitárias proporcionadas pelo mesmo regime e que JFB arriscou, com coragem de assinalar, apresentar como farol inspirador face às iniquidades das desigualdades capitalistas. Teríamos tido então, na RDA mas provavelmente extensível ao restante campo do “socialismo real”, uma espécie de regime híbrido (e dúplice), reprimindo as liberdades, os direitos cívicos e humanos e as aspirações à democracia, mas garantindo para todos “segurança, trabalho, pão e habitação”, numa alquimia política de mistura do melhor e do pior expectáveis dos sistemas políticos (e com uma espécie de equivalência simétrica na história da propaganda neo-liberal que aponta o Chile de Pinochet como censurável quanto à sua natureza ditatorial mas um exemplo de aplicação de boas soluções capitalistas que levaram a altos índices de crescimento económico).
 
A tese de JFB, numa primeira leitura, é naturalmente simpática e entusiasmante para quem vive em democracia capitalista, como é o caso do nosso burgo pátrio. Porque, permitindo o consolo dado pelo prazer de se viver em liberdade e democracia, privilegiados portanto relativamente à experiência dos alemães que foram cidadãos prisioneiros da RDA (“metade podre” da “cebola RDA”), nos dá a noção palpável de que é possível, e sendo-o é também desejável, alcançarmos, se por isso lutarmos, os padrões de justiça social que os reprimidos alemães do leste dispunham e que, hoje, sustenta, inclusive, uma assinalável “este-nostalgia” (“metade sã” da “cebola RDA”). E quem de esquerda não entende como inseparáveis a democracia política e a democracia social? Alvo garantido, separadas as setas rombas das setas aferidas, faltou a JFB demonstrar a sustentabilidade, a realidade de suporte, da “metade” da RDA salva. Ou seja, o que sustentava a “justiça social” mantida num regime tirânico?  Naturalmente não se distribuindo o que não se tem, o regime da RDA para funcionar bem socialmente de forma consistente tinha de ter um suporte económico e financeiro equilibrado e sustentado. Ficando-me esta dúvida elementar, não encontrando resposta no excelente texto de JFB, fui encontrar outra fonte de esclarecimento. Encontrei-a num livro que recentemente aqui referi. Escreve Victor Sebestyen:
 
“(…) Krenz [o sucessor de Honecker após o golpe palaciano que destituiu Honecker já em pleno estertor do regime] ficou a par da verdadeira dimensão da catastrófica situação financeira em que Honecker tinha deixado o país. Todos os dirigentes desconheciam os factos, à excepção de Günter Mittag (o czar das finanças do regime), do financista Alexander Schalck-Golodkwski, do director da Stasi Erich Mielke e de Gerhard Schürer, o director do planeamento estatal da RDA. Mas agora a restante direcção do Partido foi informada e o choque foi mais do que óbvio: a bancarrota do país era mais que certa. A Alemanha de Leste não tinha dinheiro suficiente para pagar os juros dos empréstimos estrangeiros e o mais provável era incorrer em incumprimento. Schürer apresentou então aos dirigentes do Partido um “Relatório sobre a Situação Económica da RDA e Respectivas Consequências”, em que revelava os números verdadeiros das contas nacionais. Em Maio desse ano, Schürer tinha tentado convencer Honecker a pensar seriamente na crise de endividamento, «senão vamos ficar insolventes» em breve. Mas Honecker recusara-se a confrontar essa situação, dizendo que o momento não era oportuno. E tanto ele como Mielke disseram a Schürer para «manter aquela situação em segredo». Schürer guardou segredo, como lhe tinham ordenado, mas agora tinha-se insurgido e declarou que o país já estava na verdade insolvente.”
“Toda a propaganda sobre o êxito da RDA baseava-se em mentiras, dizia o relatório. A realidade nua e crua era que, sob o «socialismo existente», quase 60% da base industrial da RDA não passava de sucata e que a produtividade nas fábricas e minas estava quase 50% abaixo da produtividade ocidental. Mas o facto mais grave era que nos últimos quinze anos o endividamento tinha dodecuplicado, num total de cento e vinte e três mil milhões de marcos e continuava a subir cerca de dez mil milhões ao ano - «um montante extraordinariamente alto para um país como a RDA», disse Schürer. Referiu ainda os logros legais usados para ocultar tais factos dos governos e dos bancos ocidentais, bem como os empréstimos a curto prazo em que o país incorrera para pagar os juros dos créditos a longo prazo. Se os mercados financeiros se apercebessem de como a RDA estava a mentir descaradamente sobre os seus activos, os empréstimos ocidentais cessariam imediatamente. Era talvez demasiado tarde para o país parar de contrair empréstimos. Schürer disse ainda que a situação financeira não teria sido tão desastrosa se tivessem sido tomadas medidas radicais para reduzir o endividamento há cinco anos. Mas agora a situação estava totalmente descontrolada. «Só a simples medida de evitar mais endividamento implicaria uma descida dos padrões de vida em cerca de 25% a 30% no próximo ano, o que tornaria a RDA ingovernável.»”
“Krenz e os outros dirigentes ficaram horrorizados com estas informações. As suas hipóteses de sobrevivência política eram mais do que escassas. Ou até mesmo nulas, se uma das primeiras acções fosse o anúncio de penosas medidas de austeridade.”  
 

Em que ficamos? Segundo Sebestyen, a “metade boa” da “cebola RDA” era adubada numa aldeia Potenkine à moda germânica. Seria? Mas talvez o problema esteja nos arquivos, nos acessíveis. E na RDA, por azar, nem para todos os documentos houve tempo suficiente para triturar ou queimar. E para o que restou, os investigadores pecam sempre pelo zelo da curiosidade.

 

Publicado por João Tunes às 22:24
Link do post | Comentar

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO