Esta é, goste-se ou não, uma “metade” do país e povo que somos. Uma “metade” que vem direitinha das trevas do país salazarista-marcelista que acordou com uma revolução que lhe entregou a liberdade mas não mudou muito nos hábitos, nas tradições, nos costumes, nas fixações culturais. E foram muitos os que não apanharam o comboio da modernidade, da maturidade cívica e da libertação cultural, preferindo a estagnação nas estações velhas e caducas dos hábitos velhos e indignos, manchados pelo machismo e pelo desprezo para com crianças e velhos, exactamente porque são indefesos, mostrando que a cobardia, a par da inveja, ainda são defeitos nossos com dimensão colectiva. Para isto, nem a vaga de politização vinda em enxurrada com a chegada dos partidos ajudou, como não ajudou igualmente a estabilização democrática, com as consequentes fragmentações políticas, sociais e culturais e que cristalizaram o desenvolvimento do civismo e da cidadania, o que foi acompanhado do retorno do entronamento dos valores conservadores e com o catolicismo beato a querer pautar vidas e relações. Os governantes querem indicadores de sucesso, não tratarem as chagas culturais que flagelam os mais fracos. Os políticos querem votos e alta política, explorar os efeitos demagógicos que levantam ou fazem cair governos, carne para greves e manifestações. Cardeais, bispos e padres andam mais entretidos em pregar sobre como fornicar de maneira cristã. A comunicação social dá-lhes, quando calha, uma manchete ou uma notícia sumida conforme a quantidade de sangue das violências ou a dimensão da tara revelada, remetendo, por regra, os assuntos dos abusos, se forem sonantes, para as crónicas dos “feios, porcos e maus” e que tem um público específico (mas alargado) constituído por leitores inconscientemente sádicos e masoquistas. Neste panorama, adormecido no desprezo para com os nossos hábitos retrógrados, as actuais cabeças do Estado ajudam à eternização desta missa triste: um primeiro-ministro parolo no optimismo e no culto da tecnocracia, com tantos sarilhos de pelo menos más companhias que não lhe sobra atenção para se dedicar aos sarilhos reais e colectivos; um presidente e a sua Maria saídos das catacumbas de um atavismo serôdio, cada vez mais beatos e menos modernos. A solução que resta, como resistência de indignação, é continuar a clamar contra a moda e a maré. Até que a estupidez cívica, a força bruta dos cobardes, a indiferença perante os fracos, se reduzam a pó.
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