
Eu não sei, ele não esclareceu, onde Rui Silva esteve no 25 de Novembro de 1975. Se foi mobilizado para Tancos ou Monte Real, se tentou mobilizar os fuzileiros em Vale do Zebro, ou se deu uma olhadela em Monsanto, na Amadora junto aos Comandos, ou apenas deu ânimo ao Durant Clemente na RTP, ou então, hipótese mais heróica, se assessorou Costa Martins na sua misteriosa missão ao Copcon, o que só seria ultrapassado em partilha de raridade histórica pela eventualidade de ter escutado a conversa secreta entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal na noite crucial. Talvez, antes e pelo contrário, não tenha saído à rua nesse dia. Mas bom mesmo, melhor que tudo, é que Rui Silva prefira “factos concretos ou evidências”. Também eu opto por esse menu. Por isso, só por isso, lhe transcrevo um post que coloquei neste blogue em Abril de 2004, um flash da minha memória da experiência, concreta e evidente, relativa a 25 de Novembro de 1975:
A orientação veio rápida e sem margem para hesitações. Chegou a Hora. Tudo ia estar em jogo para se ganhar ou se perder. Não havia lugar para meias tintas. Ou se ia para o socialismo puro ou se regredia para a longa noite. A sentença estava traçada. Portugal tinha a sina do tudo ou nada, democracia parlamentar burguesa é que não tinha cá cabidela. Aquecida a luta de classes, a solução estaria agora nas espingardas e não nos votos. Pois, 1917 em Petrogrado, 1948 em Praga, etc e tal. Ou nós ou eles.
A instrução era para se saber rapidamente quem tinha feito a tropa mais a guerra e qual a especialidade castrense. Levantamento feito, pelotão constituído. De trinta e um de boca mas era o que se podia arranjar. É esta noite. Mais vale improvisar e atamancar que perder o comboio expresso da história. Vamos a isso. É esta noite. Ou nós ou eles.
Os pelotões improvisados são encaminhados para uma Escola Primária em Marvila. No escurecer, as sombras dos vultos movem-se. Senhas e contra-senhas. A sede do PS local inquieta-se com a proximidade dos movimentos. O que é isto? Há emboscada? E lá teriam as suas informações da outra banda. Montam-se vigilâncias reforçadas dos dois lados. Vultos para cá, vultos para lá.
No ginásio da Escola, aguarda-se. Esperar, aguentar. As armas de Braço de Prata vão chegar a qualquer momento, fresquinhas e prontas a disparar socialismo. Depois era só saber-se onde ficava o Palácio de Inverno a conquistar. Esperando o sinal do cruzador Aurora das terras lusitanas. E avançar. Os caboucos do Exército Vermelho lusitano estavam metidos dentro do terreno. Melhor, enterrados naquela Escola Primária de Marvila e noutras trincheiras. Os dirigentes sabem o que fazem. São revolucionários experimentados, isto para eles é o b, á, bá. As horas passam. E ouvem-se os barulhos dos movimentos dos gajos do PS. Surgem os primeiros sinais de impaciência. O camarada que devia entender-se com a bazuca quer ir para casa porque tinha a mulher em polvorosa. Aguenta que isto está quase. Não vais ficar fora do retrato do momento decisivo da história do proletariado português. Não aguento nada, vou para casa, senão não consigo aturar a mulher. Calma, isto está por pouco. Vamos trocar as voltas aos gajos que se deixaram embalar com a história da retirada da ditadura do proletariado do programa. A burguesia vai ver como elas lhe mordem. Antes que nos mordam a nós. Agora só se pode ganhar ou perder. Não há direito a empates. Está mesmo a chegar o material de Braço de Prata. Depois é que vão ser elas. Ou nós ou eles.
Lá fora, na escuridão, só se ouvem os barulhos dos gajos do PS. A nova ordem chega, malta, é preciso é calma, vamos todos retirar em grupos e sem dar nas vistas. Não é desta. Aqui não esteve ninguém. Ou, então, foi só um convívio de solteiros e casados. Fica para a próxima. Não há relógio que marque a hora da revolução. O que é preciso é que não lhe faltem a corda ou as pilhas. A ocasião soará. Mas não é desta. O camarada da bazuca é o primeiro a zarpar direitinho a tentar recuperar o sossego da mulher. Os outros vão saindo, evitando passar junto aos gajos do PS de Marvila. Pensa-se que os camaradas de Braço de Prata devem-se ter cortado. Mas se eles se baldaram, houve muitas mais baldas. Se calhar, foi o proletariado que tinha mais olhos que barriga. Ou então, os revolucionários profissionais da vanguarda tinham a lição mal aprendida com pressas demasiadas.
Demorou montes de tempos até perceber quanto foi bom para a democracia e para todos, nós e eles, que as tais armas de Braço de Prata não tivessem chegado até à Escola Primária de Marvila em 25 de Novembro de 1975. Como é que o camarada da bazuca se ia concentrar com a mente perturbada pelo desatino do raio da mulher?
Caro João, muito obrigado pela referência e pela partilha da experiência que relata. É sempre bom olharmos para mais um lado da história, a acrescentar a muito outros, tão válidos quanto os nossos.
Não leio neste seu postal rigorosamente nada que venha alterar as conclusões que tirei do debate televisivo com os três intervenientes que referi no meu blogue, e que o João deixa de lado neste seu comentário, e continuo a identificar do que disseram variadíssimas contradições por um lado, novas alegações por outro.
Uma vez mais, agradeço a referência, aliás totalmente imerecida, embora perceba que a faz em tom crítico, ou mesmo de troça, ao estilo novo-Rita Rato. Só espero que me dê a importância que mereço, e que não basta mais no ceguinho, como fez com a rapariga, que aqui andou na berlinda postais e postais a fio.
Com respeito, um abraço
Rui Silva
"tom crítico", "troça", "estilo novo - Rita Rato"? Mas que injusto e tão susceptível...
Nada disso. Vc já comentou aqui várias vezes colocando livremente as suas interrogações e divergências. Padece de alguma fragilidade que impeça que a rua da conversa tenha dois sentidos?
[para mais, temos em comum, pode ser a única coisa que partilhemos mas é, termos ambos filhas com o nome de Catarina, provavelmente frutos gémeos da mesma inspiração]
Certamente partilhamos mais que isso, embora as divergências possam ser em maior número e "qualidade". Se aqui comento é porque, apesar das ditas divergência, respeito a sua opinião e a argumentação, sólida mas naturalmente contrariável.
Em tudo o mais, sabe o João - pelo menos creio que sabe, porque já lho disse - que a 25.11.1975 não era sequer nascido, e por isso lhe apontei o tom trocista, na especulação acerca da minha vivência desse dia.
Nem sempre os acontecimentos se vivem se forem vividos. O seu post soou-me a ser escrito com uma identificação concreta, tentando confirmar, através de um debate, uma interpretação favorável mas parcial, o que é uma forma de se viverem acontecimentos mesmo não os tendo vivido mas tomando partido. Só que essa interpretação desculpabilizante e revisionista afecta, naturalmente, quem os viveu por dentro e sabe que aconteceu o que, por interesse histórico e de propaganda, se quer apagar do reino dos factos. Se entendeu a tentativa da desmontagem pela ironia do seu exercício como troça, penitencio-me.
De Ana Costa a 29 de Novembro de 2009
Mas a conversa secreta foi entre Melo Antunes e Álvaro Cunhal,ou entre Costa Gomes a Álvaro Cunhal?
Melo Antunes e Costa Gomes, nesses acontecimentos (o contra-golpe dos 9 colocou-se sob comando de Costa Gomes), estavam no mesmo barco. Tanto quanto se considera apurado, julgo que Jorge Sampaio organizou um encontro de emergência entre AC e MA que antecedeu um telefonema de CG para AC. E os fuzileiros ficaram nos quartéis. E os militantes do PCP mobilizados foram mandados recuar. E foi garantida a não ilegalização do PCP. E os paras e extrema-esquerda ficaram isolados na cara do animal.
João Tunes,
sem querer pôr em causa quem tem um conhecimento directo e vivido dos acontecimentos, até que ponto esse género de concentrações não podiam ter uma intenção defensiva?
Não, não creio que fosse defensiva. Foi, antes, uma oportunidade de reserva ofensiva. A mobilização, do PCP, foi feita nessa tónica e tinha três vertentes: 1) se o golpe desencadeado pelo radicalismo e desespero da extrema-esquerda (foi esta, mais a ingenuidade radical dos paras, e não o PCP, quem tomou a iniciativa "provocada") tivesse margem de sucesso, nomeadamente atando as mãos do PR Costa Gomes, havia que cavalgá-la e ultrapassá-la, com a esquerda militar controlada a tomar o poder, aproveitando as batatas cozidas na panela; 2) a correlação global de forças militares com poder de combate dos dois lados pendia claramente mais para a esquerda militar do que para os 9 + direita, daí a confiança revolucionária que levou à mobilização, preparatória da insurreição armada, dos militantes do PCP, atribuindo-lhes missões pré-insurrecionais; 3) de facto, os fuzileiros, só por si, juntando-se aos paras, chegavam para as encomendas do Jaime e seus comandos, mas quando Costa Gomes se encosta aos 9, na perspectiva de evitar a guerra civil (ele teve a clara noção do banho de sangue que ia acontecer, até porque face ao desequilíbrio interno havia uma intervenção militar estrangeira na calha), obrigando de forma conseguida á continência hierárquica a esquerda e extrema esquerda mais a direita e a extrema direita misturadas com os 9, obriga à opção alternativa que nenhum dos belicistas quiz assumir: fazer o seu número até ao fim contra e por cima de Costa Gomes; mas então, em resultado dos contactos (de Melo Antunes e de Costa Gomes) com Cunhal, os fuzas guardam as armas, a ilegalização e perseguição do PCP é travada, o PCP desmobiliza e a extrema esquerda que saira fica no pau da roupa (o que não desgosta, antes pelo contrário, o PCP, tanto mais que o 25N se foi a morte da extrema esquerda, de que só se reciclou com o Bloco, mas o PCP, como se verificou e verifica, embora debilitado ao ponto de se defrontar com a impossibilidade revolucionária, tinha forças e reservas para continuar a intervir e recuperar).
Esta leitura dos acontecimentos do 25 N fui adquirindo-a mais tarde e juntando os dados do puzzle. Na altura, militante de base do PCP, eu limitava-me a seguir instruções e é regra comunista não se saber o porquê e para quê, assuntos restritos para a ciência do comando revolucionário do proletariado. A única questão que se tinha de responder era se se estava pela revolução ou pela contra-revolução, com os trabalhadores ou com a direita e o fascismo (incluindo aqui, como costume de sempre, ontem e hoje, o PS). Mandaram que, na fábrica onde trabalhava, na zona oriental de Lisboa, arranjasse um pelotão para a acção armada (critérios: confiança política e ter passado pela guerra colonial, discriminando as especialidades) e eu, obediente e feliz por o ser (um revolucionário disciplinado é sempre uma pessoa feliz), arranjei-o (incluía uma senhora que dizia que sabia disparar qualquer arma!) e sob meu comando (por ter a credencial de ter feito a guerra colonial na Guiné na condição de oficial miliciano). Só faltaram as armas e as munições. Felizmente. Mas não era uma acção defensiva (proteger uma posição ou personalidades, conter uma acção militar, evitar um excesso ou represália) como a hipótese que o Ricardo Alves coloca. Ao contrário, era uma movimentação de reserva ofensiva (isto é, para tomar uma iniciativa logo que o armamento estivesse disponível e acessível e as condições fossem favoráveis), tanto mais que a mobilização e acantonamento (e já havia, previamente, sido montada uma base logística que nos permitiu ocupar, o meu "pelotão" e mais uns dez idênticos da zona oriental de Lisboa, sem assalto, resistência ou qualquer obstáculo, uma escola primária e pela calada da noite) se dá quando os paras ainda estão para saltarem.
Eu, embora não tendo vivido os acontecimentos, junto as peças do puzzle mais ou menos da mesma maneira. O que me surpreende é que tenha havido tantas concentrações de militantes na noite de 24 (a essa data que se refere, penso eu, e não a 24 horas depois).
Mas, mesmo assim, restam algumas questões:
1) o centro de comando era militar ou civil? Ou havia articulação entre os dois?
2) Não havendo articulação entre civis de extrema e do PCP, havia entre militares desses dois sectores?
3) E a grande questão: afinal quem fez saltar os páras?
Arrisco:
1) A direcção do PCP, controlada directamente por Cunhal, tinha um "sector militar" que era segmentada em sub-organismos estanques, o que impossibilitava que os próprios funcionários controleiros conhecessem toda a penetração do PCP nas Forças Armadas, só Cunhal tinha a lista completa (havia, inclusivé, membros do CC que trabalhavam aqui mas eram membros "clandestinos" daquele orgão, não sendo eleitos em Congresso mas sim cooptados, nunca sendo essa qualidade divulgada publicamente). Assim, o Raimundo Narciso controlava parte dos oficiais do MFA; Jaime Serra controlava outros, os de patente e responsabilidade mais alta, sobretudo ao nível de coroneis; Cunhal controlava directamente os do top "discreto" e "secreto" (onde, naturalmente, se incluiria Vasco Gonçalves); havendo um número de funcionários do PCP de baixo escalão que controlavam as várias águas da "cascata" (caricata era a situação de um controleiro, o Andrés, que sendo cabo marinheiro controlava e comandava politicamente o primeiro tenente Judas, hoje autarca da CDU no Seixal, então oficial destacado do MFA e membro da sua cúpula, o Conselho da Revolução, supondo eu que, para evitar que o cabo fizesse continência ao primeiro-tenente, ou seja o controleiro se aprontar a ordens do controlado, nas suas reuniões, eles utilizassem a saudação de punho fechado para contornar as incomodidades da hierarquia partidariamente invertida). Portanto, ao nível da esquerda militar, não havia dois braços e dois comandos mas um único, político-militar, cuja cabeça era Cunhal, ele mesmo, o Marechal da Revolução.
2) Nenhuma disciplina é perfeita. Mesmo a mais porfiada e estrutural. Os sistemas de influência, durante o PREC, entre o PCP e os esquerdistas era poroso. E não podemos esquecer que a revolução portuguesa terá sido aquela em que, em toda a história, a extrema-esquerda conseguiu maior expressão e influência. Isto acontecia entre militares, entre civis, entre militares e civis. E muitos esforços eram dirigidos a tentar gerir o sistema interpenetrante, sobretudo ao nível da militância das bases. Na zona oriental de Lisboa, onde eu militei, era uma constante dor de cabeça trazer ao redil os militantes do PCP nas fábricas da zona que iam atrás da influência dos militares esquerdistas do RALIS, em vez de seguirem a "linha justa". Até porque era naquele quartel que os CDR's recebiam treino para-militar e, embora os oficiais esquerdistas se declarassem ao serviço da classe operária, não perdiam oportunidade para indicarem o caminho, orientando com uso dos seus galões, aos operários que diziam servir. Entre militares, o processo era idêntico, havendo duas dinâmicas - a da "unidade" face á contra-revolução; a da fragmentação ideológica no caminho revolucionário, sobretudo acelerado após as eleições para a Constituinte que deram a vitória eleitoral à "direita" e geraram um enorme e crítico conflito entre as vias eleitorais e revolucionárias. É convicção minha que tendo o PCP a melhor organização, estrutura, disciplina e influência entre os militares e os civis, a maioria era facilmente arrastada pela oratória revolucionária, mais imediatista, mais populista e mais demagógica, da extrema esquerda, sobretudo durante os pontos críticos de resolução.
3) Os paras saltaram por expontaneidade emocional e corporativa (associada às questões e fracturas verificadas na Força Aérea), a que se juntou o sindroma da má consciência de os paras não terem estado no 25A (estavam agarrados aos kaulzistas) e durante o 11 de Março e na liquidação da Rádio Renascença, terem actuado ao serviço da "contra-revolução" (o que. além do mais, lhes alimentava um complexo rancoroso para com os fuzileiros, considerados a guarda pretoriana justa e consequente de revolução, relativamente aos quais havia um velho ódio competitivo - verdadeiramente clubístico - vindo da guerra colonial). O irredentismo aventureiro dos paras pós as "máquinas" em movimento - a dos esquerdistas concentrados no Copcon; a da esquerda militar - PCP, apanhando o combóio e tentando saltar para a locomotiva; a dos "9 + direita" que esperavam um pretexto para saltarem eles, desencadeando-se então vários golpes dentro do contra-golpe.
Claro, Ricardo Alves, tem toda razão quando precisa que os acontecimentos de mobilização atrás referidos se passaram na noite de 24 para 25 de Novembro.
Certo, se a concentração foi na noite de 24 mais dificilmente se pode considerar «defensiva». Mas creio que na noite de 25 ainda houve concentrações - no Vitória, por exemplo.
E a grande questão que sobra é: por que é que o PCP não deu ordem para sair? Risco por risco, ou se é bolchevique ou não...
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