Terça-feira, 10 de Novembro de 2009

O único muro que pede companhia

 

Dando uma volta pelas opiniões expressas dos que se sentem desconfortáveis com o 20º aniversário da queda do Muro, nomeadamente a associação deste momento histórico e político com uma pulsão colectiva pelo primado da liberdade, duas formas de escapatórias são recorrentes: 1) invocarem a “nostalgia” de parte dos alemães de leste pretensamente fundamentada nos prejuízos e perdas de direitos na passagem da RDA à Alemanha unificada; 2) lembrarem não este, o de Berlim, mas outros “muros”, alguns físicos e outros agregados ao desemprego, à pobreza, á exploração e aos atentados e recuos de direitos verificados nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Sobre a “nostalgia”, enquanto diluente da monstruosidade do Muro de Berlim e da própria RDA, dispenso-me de valorizar, por analogia, o peso, a importância e os efeitos dos saudosistas de Salazar por frustração da resposta democrática portuguesa a todos os nossos problemas (reais!).
Obviamente que não houve um só “muro”. Outros existiram antes e depois do de Berlim. E, como sou um optimista que se pretende avisado, admito que vão existir alguns mais. Todos inaceitáveis, repugnantes, a derrubar. Sem má consciência nem selectividade. Mas uma coisa garanto: quando aqui, ou noutro local, se discutir e protestar relativamente ao muro México/EUA, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim; quando aqui, ou noutro local, se discutir e protestar relativamente ao muro israelita na Palestina, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim; quando aqui, ou noutro local, se falar dos muros da miséria e do desemprego, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim. O que não impede, nem contradiz, a constatação de que o Muro de Berlim tem algo diferente dos restantes muros: caído há 20 anos, ainda arrasta incomodidades cúmplices falar-se dele, comemorar o seu fim. Ao contrário dos restantes muros, incómodos para os seus construtores e responsáveis, universalmente condenáveis enquanto focos de afronta aos direitos humanos e dos povos, valendo cada um por si como iniquidade, sem outros defensores que os seus construtores, este muro, o Muro de Berlim, parece pedir companhias de outros para que dele não se fale ou refira-se “de passagem”, mudando-se de página de assunto como absolvição possível. O que demonstra que o Muro de Berlim só caiu fisicamente. Enquanto símbolo totalitário, afronta à liberdade, expressão de uma forma de poder, ícone de uma ideologia, cúmplice serôdio de afinidades com um regime despótico que persistem como marca de água de uma intimidade com certa forma de entender e fazer política, o Muro de Berlim, mesmo escaqueirado, continua. Portanto, precisa de mais marteladas. Até cair de vez, como os outros muros da nossa vergonha.
 

(de um comentário que coloquei aqui)

 

Publicado por João Tunes às 02:09
Link do post | Comentar
4 comentários:
De Jorge Conceição a 10 de Novembro de 2009
João Tunes, o meu forte (e prolongado) aplauso por esta declaração! Solidarizo-me totalmente com ela.
De Ana Paula Fitas a 10 de Novembro de 2009
Gostei muito deste texto... será que o posso inserir no Leituras Cruzadas que, ontem, publiquei?... em jeito de actualização das leituras escolhidas?...
Abraço :)
Ana Paula
De João Tunes a 10 de Novembro de 2009
Ora essa, por quem sois...

De Ana Paula Fitas a 10 de Novembro de 2009
Assim sendo, com a vossa graça, assim procederei :)

Comentar post

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO