
Dando uma volta pelas opiniões expressas dos que se sentem desconfortáveis com o 20º aniversário da queda do Muro, nomeadamente a associação deste momento histórico e político com uma pulsão colectiva pelo primado da liberdade, duas formas de escapatórias são recorrentes: 1) invocarem a “nostalgia” de parte dos alemães de leste pretensamente fundamentada nos prejuízos e perdas de direitos na passagem da RDA à Alemanha unificada; 2) lembrarem não este, o de Berlim, mas outros “muros”, alguns físicos e outros agregados ao desemprego, à pobreza, á exploração e aos atentados e recuos de direitos verificados nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Sobre a “nostalgia”, enquanto diluente da monstruosidade do Muro de Berlim e da própria RDA, dispenso-me de valorizar, por analogia, o peso, a importância e os efeitos dos saudosistas de Salazar por frustração da resposta democrática portuguesa a todos os nossos problemas (reais!).
Obviamente que não houve um só “muro”. Outros existiram antes e depois do de Berlim. E, como sou um optimista que se pretende avisado, admito que vão existir alguns mais. Todos inaceitáveis, repugnantes, a derrubar. Sem má consciência nem selectividade. Mas uma coisa garanto: quando aqui, ou noutro local, se discutir e protestar relativamente ao muro México/EUA, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim; quando aqui, ou noutro local, se discutir e protestar relativamente ao muro israelita na Palestina, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim; quando aqui, ou noutro local, se falar dos muros da miséria e do desemprego, não vou espalhar névoas falando do Muro de Berlim. O que não impede, nem contradiz, a constatação de que o Muro de Berlim tem algo diferente dos restantes muros: caído há 20 anos, ainda arrasta incomodidades cúmplices falar-se dele, comemorar o seu fim. Ao contrário dos restantes muros, incómodos para os seus construtores e responsáveis, universalmente condenáveis enquanto focos de afronta aos direitos humanos e dos povos, valendo cada um por si como iniquidade, sem outros defensores que os seus construtores, este muro, o Muro de Berlim, parece pedir companhias de outros para que dele não se fale ou refira-se “de passagem”, mudando-se de página de assunto como absolvição possível. O que demonstra que o Muro de Berlim só caiu fisicamente. Enquanto símbolo totalitário, afronta à liberdade, expressão de uma forma de poder, ícone de uma ideologia, cúmplice serôdio de afinidades com um regime despótico que persistem como marca de água de uma intimidade com certa forma de entender e fazer política, o Muro de Berlim, mesmo escaqueirado, continua. Portanto, precisa de mais marteladas. Até cair de vez, como os outros muros da nossa vergonha.
(de um comentário que coloquei aqui)