

Juan José Millás não teve sorte com as dores de infância, elas foram muitas. Mero acaso pois nenhuma criança escolhe, incluindo as dores. As escolhas ficam sempre para a idade adulta, sobretudo a de banalizar a memória, tentando viver sem ela, ou preferir entender que todos os trajectos começam ali, na infância, onde estão todos os enigmas e todas as chaves para nos entendermos. Uma lucidez acerada e um invulgar talento de escrita podem, ainda, fazer o que Juan José Millás conseguiu no seu romance “O Mundo” (*): a revisitação da infância, no seu tempo e lugar, como quem vai ao cinema e está tudo ali, projectado, em movimento. E perceber-se que, na vida vivida, a infância está sempre a espetar-nos. Tudo dependendo da memória e da coragem de a ela se "descer".
Quando há alguns meses atrás foi editada a versão portuguesa de “O Mundo”, folheado e comprado o livro, desconfiei que tinha ali um fascínio literário à minha disposição. Decidi guardá-lo para o ler mais tarde, em relax favorável a não perder pitada dos sabores. Fiz bem, sobretudo porque é inevitável a tentação de se fazerem viagens paralelas quando se acompanha um escritor em viagem de vida. No caso, com a ajuda particular de eu e o escritor termos vivido semelhanças dos tempos de crescimento, na mesma pequenez e na mesma asfixia, confirmando as enormes semelhanças entre as castrações operadas pelo franquismo e pelo salazarismo. E, visto por este ângulo, está ainda por avaliar quanto as décadas das noites ibéricas marcaram as infâncias portuguesa e espanhola, directa e indirectamente através de pais tristes.
Livro lúcido e saboroso, uma autêntica viagem ao fazer-se humano, “O Mundo” tem um brinde – a figura de “Vitaminas”, um dos personagens que vai ficar, arrisco, como um clássico da literatura. Impossível pedir-se mais a um livro da melhor literatura, hispânica mas tão perto.
(*) - “O Mundo”, Juan José Millás, Editora Planeta