Rui Bebiano interroga sobre a incomunicabilidade verificada entre as resistências antifascistas e anticomunistas durante os períodos simultâneos do "socialismo real" e dos "fascismos ibéricos".
A tese defendida por RB de que o corte das pontes se deveu à existência paralela de “Estados policiais” tem evidente e primordial substância. Mas, no meu entender, sendo uma explicação não é toda a explicação. Havia, além do mais, um “jogo de espelhos diferentes” com que ambas as dissidências se olhavam. Os dissidentes anticomunistas do “socialismo real” odiavam a asfixia do Estado-Partido e desejavam a “alternativa visível”, ou seja, sobretudo, o acesso ao consumo de marca e não normalizado, o direito ao individualismo, a liberdade de expressão alternativa, o direito a viajar, à escolha e à pluralidade. E o Ocidente era o modelo que lhes estava interdito, atraindo-os tanto que alguns deles decerto não se importariam de “trocar” de “Estado policial” e até emigrariam para as ditaduras portuguesa ou espanhola se tal fosse o “contrato” imposto para largarem a asfixia sovietizada, mesmo abdicando de algumas bandeiras. Enquanto isto, os dissidentes antifascistas nos “fascismos ibéricos”, os educados maioritariamente no comunismo formatado no “socialismo real”, clamando contra a falta de liberdades, tinham, como sonho maior, dispensar, se possível, a “etapa capitalista-democrática” e desembocarem(-nos) o mais rapidamente possível num dos Estados plantados à sombra do Partido, ontem à semelhança da Checoslováquia esmagada pelos tanques soviéticos, hoje instalando uma sociedade sósia da cubano-castrista ou produzindo súbditos de um Kim de opereta, mitificando e glorificando aquilo que os dissidentes de Leste odiavam por a estarem a viver. Porque, como explica Correia da Fonseca, homem do aparelho do “Avante”, no último número deste jornal, o comunismo é “a única via para que haja futuro”:
Traduzindo, o futuro, para Correia da Fonseca e seus camaradas, só existe no comunismo, enquanto o presente, mesmo a democracia, é a "espera do comunismo" (do “Estado policial que se deseja”). Se, de facto, cada dissidência activista, a anticomunista e a antifascista, negava e combatia o Estado policial que os oprimia, a “má polícia” era, apenas ou sobretudo, a caseira. Haveria, portanto, um problema de equívoco e identidade. Com destino marcado para a simetria irredutível. E se o fim da “guerra fria” transferiu a dissidência a Leste (perante a conversão capitalista-democrática) para os actuais nostálgicos da “ordem policial” desaparecida quando o Partido se desfez apodrecido, os herdeiros do antifascismo comunista continuam iguais a si mesmo, à espera da mesma polícia política, a "sua". Ou seja, finalmente miram-se no mesmo espelho.
De acordo, caro João Tunes, com o essencial do argumento. Discordo apenas do qualificativo de «tese» atribuído ao que escrevi. Tratou-se apenas de um apontamento despretensioso, mais focado nas «vivências de oposição» dos dois lados - centrada apenas na juventude e nos intelectuais de oposição, e ainda assim só a partir do final da década de 1960 - do que numa tentativa de compreensão dos seus fundamentos. Este post, sim, dá algumas pistas.
Aspecto a considerar é, de facto, que a oposição "a leste" visava basicamente os excessos dos regimes, não a sua destruição (talvez apenas na Checoslováquia mais cedo se tenha pensado mais longe). A cegueira destes é que nos anos 80 ampliou os processos de contestação. Um tema interessante porque pode também ajudar a explicar certos «revivalismos» actuais. Quando (se) o engenho funcionar, tentarei regressar ao assunto.
A ideia que o Rui coloca de que a «a oposição "a leste" visava basicamente os excessos dos regimes» dá pano para mangas de conversa (talvez tanta como a de se apurar se a "oposição democrática" na ditadura portuguesa da fase marcelista se contentaria como uma efectiva capacidade de Caetano em conter os excessos do regime). Uma luta política quando desenvolvida perante uma ditadura com um poderoso aparelho policial com uma enorme e eficiente rede de controlo político, social e pessoal, com um Estado-Partido todo poderoso de que dependiam o emprego, a possibilidade de estudar e ensinar e de se viajar ou sequer de se deslocar entre cidades, remetendo o dissidente para a obrigação de exercer um trabalho manual pesado e desqualificado como meio de sobrevivência e "reeducação", implicava uma enorme moderação quanto às metas de mudança. Numa asfixia totalitária em que os fascismos ibéricos foram pigmeus se comparados com as sociedades orwellianas criadas pelo comunismo real (estas tinham tudo o que Salazar "nos deu" - prisões políticas, torturas, assassinatos políticos, julgamentos-farsas, censura, propaganda de sentido único, vigilância por "bufos", perda de emprego por motivos políticos, vigilância da moral e costumes, MAIS um controlo do partido e da polícia que enquadrava a vida particular, social e profissional de todos e cada um), uma fresta na janela era como subir aos Alpes e olhar a paisagem. Há muito para estudar e saber sobre a dissidência "a leste" mas, obviamente, a esperança, a grande esperança, era que a fortaleza se defrontasse perante a impossibilidade de continuar encerrada face ao definhamento económico, ao desinteresse social, cultural e académico, aos "desvios juvenis", aos efeitos da corrupção e da ostentação dos privilégios da nomenklatura. Ou seja, que "o partido abrisse os olhos". E a morte de Estaline arrastou a queda do mito de Estaline, o que transformou os mitos do poder comunista em mitos desmontáveis numa possível cadeia imparável (Mao percebeu isto muito bem quando manteve Estaline no altar porque sabia que deitar abaixo Jesus na igreja abre a hipótese de todos os santos se espatifarem em cadeia e por "efeito dominó"). O certo é que houve, muitas vezes com total inabilidade, muitos dirigentes comunistas que perceberam que o comunismo totalitário levaria as suas sociedades para becos sem saída e disso os sinais nas suas sociedades já eram evidentes quanto à dessintonia absoluta entre partido e sociedade num grau em que o partido já estava acantonado em posições defensivas (tendo o poder absoluto!) perante a sociedade, a cultura, a juventude, tudo o que faz mover os povos e a economia. A fase da destalinização não foi homogénea, nem o podia ser dadas as diferenças e estanquidades dentro da "comunidade socialista". Na Hungria, em 1956, onde o PC era artificial, as fracturas levaram uma parte da direcção do PC para os braços da revanche anticomunista e a revolta teve um caracter de nítida contra-revolução. Em 1961, na RDA, os enormes tumultos tiveram raiz operária e foi autónoma do Partido. Na Polónia, também com um partido artificial, Gomulka sai da prisão onde os estalinistas o tinham encarcerado para conter as fúrias operárias mas rapidamente se mostrou impotente e incompetente para reformar o irreformável. E é só na Checoslováquia que a abertura, a reforma e a mudança vem "de cima para baixo", desde Dubceck até às massas, impregnando o partido e colocando a ala estalinsita na conspiração. A Primavera de 68 na Checoslováquia foi efectivamente uma "revolução comunista" (dentro de um regime comunista). A única (e, talvez por isso, tão fácil de esmagar pelos tanques soviéticos) em que um projecto comunista (o do "socialismo de rosto humano") galvanizou uma sociedade inteira (razões? o partido comunista era forte, antigo, com profundas raízes, e o estalinismo checoslovaco tinha sido dos mais terríveis, tentaculares e repressivos). Se na Hungria, na Polónia e na RDA, os tumultos e revoltas tiveram a ver com a aversão maioritária da população relativamente ao comunismo e ao socialismo, explodindo com as brechas da denúncia de Estaline (que paralizou parcialmente os estalinistas dos respectivos partidos), contando com apoios endógenos ao partido, na Checoslováquia há uma dualidade intra-partidária.
Esqueci-me da última parte. Quanto à conhecida ladainha de CdF, diria que se trata de um exemplo maravilhoso de 'wishful thinking'. Mais prosaicamente, podemos considerá-la uma tocante profissão de fé.
De Ana Paula Fitas a 22 de Agosto de 2009
Bom regresso, caro amigo!
Fiz link deste post na rubrica "Leituras Cruzadas"... e nomeei o Água Lisa para o Prémio "Este Blogue É Viciante"!!!
Abraço,
Ana Paula
De Van Aerts a 23 de Agosto de 2009
Off-topic.... Viva o Benfica
De Chessplayer a 23 de Agosto de 2009
"Off-topic.... Viva o Benfica"
pois, mas a procissão ainda agora saiu...
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