Dois dos factores mais importantes na diluição social e cultural da enorme comunidade dos antigos colonos e seus descendentes na sociedade portuguesa, integrando-os pelo peso da circunstância, foi a derrota do projecto colonial sem veleidade de esperança na sua regressão e os constituintes da comunidade afro-colonial nunca terem tido um tecido unificador, pesando mais as diversidades, muitas das vezes construídas no domínio do simbólico exorcista, consoante as colónias de onde foram expelidos, com expressões arreigadas e folclóricas de representações de identidades projectadas de “saudade angolana”, de “saudade moçambicana”, de “saudade caboverdiana”, etc.
Em si mesma, a espantosa integração da comunidade afro-colonial (julgo que só o CDS, no período imediato à descolonização, conseguiu constituir uma efémera “legião política de retornados” como base de apoio de reactividade revanchista às mudanças na transição para o regime democrático), constituindo – em si mesma – a “página gloriosa” da descolonização portuguesa e um dos aspectos mais conseguidos da democratização, diz muito sobre a natureza da estruturação das burguesias coloniais portuguesas em África. Primeiro, quanto à fragilidade dos projectos autonomistas- nacionalistas da burguesia “crioula” (imberbes se cotejados com os sucessos transitórios verificados pelas burguesias homólogas na Rodésia e na África do Sul), portanto nunca capazes da mínima distanciação efectiva face ao Centro do poder colonial e às suas práticas de domínio, gerando uma impotência endógena para construir uma “terceira via à brasileira”. Segundo, a dispersão do império colonial português provocou não só a atomização das “culturas crioulas” (quase todas elas primarizadas nos exercício e nos rituais dos domínios sobre os povos africanos com que “conviviam”) como a diferenciações importantes quanto aos seus pesos relativos face à população africana, os níveis sociais, culturais, de informação e de politização como manifestavam os “status” e os fenómenos escapistas que conciliavam as consciências e faziam as pontes com a “realidade africana”, normalmente cristalizadas nos fetiches expressos do “feitiço africano” [as praias, as palmeiras e as acácias, o por-do-sol, o espaço, o camarão e o bom peixe e a boa carne, a fauna e a flora, o criado preto e a cozinheira e a ama pretas, a sensualidade epidérmica pelo acesso fácil (e barato) ao sexo].
Como bem demonstra Adolfo Maria (*), num excelente livro recentemente editado (**), ao falar da realidade colonial angolana, além de uma faixa dominante cavernícola (o que muito tem a ver com o impacto do número de colonos e da sua extracção dominante de origem semi-analfabeta e de baixa condição social de origem) na sua fidelização à dominação colonial ferreamente imposta a partir do Centro, não deixaram de existir, entre a burguesia “crioula” (a dos angolanos brancos), vários impulsos e micro-organizações, polarizadas por uma e outra personalidades, que advogavam uma ou outra via e grau de autonomização ou pré-independência e, por vezes, identidades político-programáticas com a Oposição ao regime que esporadicamente se manifestava na metrópole (com o pico maior durante a campanha de Humberto Delgado). Mas não só estes proto-movimentos eram grupusculares e rivais entre si como nunca alcançaram expressão para além de um regionalismo castrador (confinados a Luanda, ao Huambo, ao Lobito, a Benguela) e sempre impotentes para se afirmarem face ao poderoso aparelho repressivo-colonial e, assim, evoluírem para uma mínima ameaça anti-integracionista do “Portugal do Minho a Timor”. Parecido ocorreu em Moçambique (as diferenças, que existem, têm mais a ver com as particularidades da colonização na faixa do Índico), apesar do apelo da “experiência sul-africana” que, naquela colónia, exercia uma extraordinária atracção e influência, e que se exprimiu de forma muito diferente, quase estanque, nas erupções “crioulas” dos consulados de arremedo autonomista na Beira e
Quando, germinando na década de 50 e explodindo na de 60, perante a obstinação de Salazar em manter, contra ventos e marés, o Império Colonial, escolhendo a via do aniquilamento para com os que se opunham ou divergiam, o nacionalismo africano e radical se afirma nas colónias portuguesas, trazendo a violência, a brutalidade e a guerra (agora a agredirem, pela primeira vez, as “duas partes”), o frágil quadro de autonomismo “crioulo” estiolou ao impor, às burguesias coloniais brancas, a escolha entre apenas dois caminhos - o cerrar fileiras com a repressão do nacionalismo negro; ou então, desatar as amarras coloniais alinhando com os movimentos nacionalistas que praticavam a luta armada e afirmavam a imposição de um poder africano organizado em moldes militarizados e de matriz marxista e onde eram previsíveis e mesmo identificáveis as manifestações de “racismo negro” (e, muitas vezes, com raízes tribais). Obviamente, a esmagadora maioria caiu para o primeiro campo, diluindo-se na mole colonial-fascista (ao contrário da metrópole, onde a PIDE era uma instituição impopular e odiada, os “pides” nas colónias eram conceituados, estimados e acarinhados pela esmagadora maioria dos colonos). Quando a descolonização se impôs, com as pressas e dramas que se conhecem, no contexto em que decorreu, os meios de emergência e desespero a que uma parte da burguesia “crioula” deitou mãos para assegurar a “presença branca” em África (em oposição ou em co-habitação com os “poderes africanos”) já estavam em contra-pé à dinâmica instalada e não restou tempo para recuperar o tempo perdido no adormecimento da fracção crioulo-autonomista. A miragem dos “novos Brasis” (no arquétipo da independência com supremacia branca) já se tinha esfumado, restando apenas o regresso apressado a penates, ou seja, à Mátria, que os acolheu e os diluiu no seu seio.
Só escassíssimos membros da burguesia colonial (por regra, descendentes da baixa ou muito baixa burguesia local), muito jovens, hiper politizados, assumiram as suas identidades africanas e abraçaram o projecto independentista nas fileiras dos movimentos de libertação, rompendo radicalmente com o projecto colonial em todos os seus matizes. Tratam-se, pois, de casos excepcionais relativamente à sua origem (eram os do “corte absoluto”) e, em quase todos os casos, somaram à radicalidade desta “traição da origem”, um percurso traumático, porque fortemente atribulado e doloroso, nas suas posteriores trajectórias de luta em que a desconfiança relativamente a eles nunca faltou. Por isso mesmo, pela vivência profunda e violenta que transportam no corpo, na alma e na memória, estes personagens ou não falam ou, os poucos que a isso ousam, demonstram-se testemunhos humanos, sociais, políticos e históricos de uma enorme riqueza e complexidade. É o caso, sem dúvida, do riquíssimo testemunho de Adolfo Maria, conduzido e recolhido pelo investigador académico Fernando Tavares Pimenta, especialista nos estudos do nacionalismo angolano, e que resulta num livro utilíssimo para que a história colonial se desembarace dos arquétipos. O que já não era sem tempo.
(*) – Adolfo Maria: quando jovem colono branco em Angola, abraçou a radicalidade ideológica, militou num dos efémeros PCA’s, foi activista cultural, integrou um grupo de brancos pró-MPLA, foi membro destacado do MPLA e, posteriormente, com Mário de Andrade, Gentil Viana e outros, foi dirigente da fracção “Revolta Activa” (expelida, combatida e perseguida pela direcção de Agostinho Neto), tendo-se dedicado, nos últimos anos, à “reconciliação angolana” e ao desenvolvimento da expressão da “sociedade civil” em Angola.
(**) – “Angola no percurso de um nacionalista, conversas com Adolfo Maria”, Fernando Tavares Pimenta, Edições Afrontamento.
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