Não sei como nem porquê, desatou meio mundo mais um naco (alinhando pelas sondagens) a bradar que o governo socrático é mesmo de esquerda, esquerda boa, pelo feito sonoro do acordo pluriclassista e plurianual para o aumento progressivo do salário mínimo.
Reconheço que os trunfos favoráveis são de peso. Primeiro que tudo, a medida impunha-se (e o que se impõe tem a importância lógica da imposição). Segundo, foi obra tirar a CGTP da algazarra das manif no frio da rua para a humilhação de misturarem a assinatura com as do patronato mais reaccionário e no ar aquecido dos gabinetes. Terceiro, conseguiram entupir o discurso do Jerónimo e levá-lo a ter de proximamente convocar nova reunião do Neo-Komintern para explicar a pureza leninista deste “passo atrás”. Quarto e quinto, deixaram felizes ou quedos Cavaco e a oposição à direita do centro e da esquerda (mais a Primeira Dama que, na “Visão”, nos surpreendeu com a espantosa revelação de que é mulher do centro-esquerda e só depois de apodrecer as suas verduras de juventude em que andou pelo esquerdismo moderado).
Mas o que é que, além das reacções e do resultante arco do consenso, define e autentica a subida do salário mínimo como uma medida identitária de um projecto de esquerda? Respondendo às zonas mais carenciadas dos TCO, pesando muito em número mas pouco em dinâmica e em poder de impulso, esta medida “social-justicialista” altera significativamente a questão da disparidade da repartição de rendimentos e a erosão dos picos maiores dos seus extremos, a reformulação das dinâmicas empresariais, a questão central dos poderes nas empresas, a precariedade galopante e institucionalizada do emprego e sub-emprego, a revitalização da economia, a expulsão do mercado do trabalho aos 40-50 anos de idade, a competitividade, a incorporação de tecnologia e o problema-charneira da transferência do político para o económico e do económico para o financeiro? Ora!
Como forma populista de calar populismos, não está mal. Bem até estará, se houver lembrança que os aumentos programados não compensam, ou limitam-se a compensar, os aumentos dos encargos com as necessidades básicas decorrentes do impacto das medidas de austeridade orçamental (nos cuidados de saúde, de educação), das despesas de transportes, dos aumentos dos juros nos empréstimos, mais outras que castigam, e vão continuar a castigar, as faixas abrangidas pelo salário mínimo. Sobretudo estas. Mas a esquerda já fica feliz com o ajuste na malha do filtro das migalhas? Então bolas, que, assim, tudo é de esquerda. Ou seja, a esquerda é tudo porque é pouco.
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