Sexta-feira, 1 de Maio de 2009

DOIS LIVROS PARA ENTENDER ABRIL

    

 

Trinta e cinco anos é pouco tempo como distância favorável à caracterização histórica. Mas, quando os factos são marcantes, é muito tempo enquanto acumular de clichés, “verdades” (muitas vezes contraditórias entre si), condenações, ressentimentos, cultos e marcenaria de mitos. E quando chegar o tempo certo, sobra o quê para os historiadores e outros investigadores da memória? Os documentos, os que resistam aos ímpetos e acasos de destruição, as versões construídas, muitas delas inevitavelmente ideologizadas. E a memória transmissível e transmitida é que paga.

 
Se nos documentos não está tudo pois nem tudo é registado e preservado, a recolha de registos testemunhais dos depoimentos dos protagonistas, enquanto são seres comunicantes, dos acontecimentos de realce, tem uma importância nuclear na abrangência e na comunicação historiográfica. O trabalho prestigiado da historiadora e investigadora Maria Manuela Cruzeiro, ligada à Universidade de Coimbra, no campo de testemunhos associados ao 25 de Abril, é já hoje (mais será amanhã, quando completo o ciclo de distanciação) um conjunto de peças fundamentais e incontornáveis na construção do puzzle que ilumine as dimensões polifacetadas das mudanças profundas da sociedade e da política operada em 1974, em que uma revolução substituiu uma ditadura por um regime democrático e a que se seguiu um numero altíssimo de episódios e convulsões. Sob a forma de entrevistas orientadas para a descodificação das participações nos actos relevantes, MMC consegue dos seus entrevistados relatos pessoais de envolvimento e participação que nenhum documento poderia revelar e nenhuma autobiografia decerto o faria. Para mais, MMC denota que consegue aquilo a que só chega uma genuína sedutora por inteligência, missão e intuição -  a criação de uma empatia favorável à recomposição temporal e factual dos entrevistados, fluidificando-lhes o fio da memória com a recriação, inclusive, do ambiente emocional em que os factos foram vividos (de igual importância ao da frieza dos factos em si). Se, finalmente, se acrescentar a estes atributos um cuidado quase maníaco com o rigor e uma escrita fresca e envolvente (agora o talento da sedução virada para os leitores), tem-se a ideia do papel de MMC na construção histórica da memória do trauma e da exaltação da revolução do 25 de Abril.
 
Após a publicação das entrevistas feitas por MMC a dois militares e figuras charneira da revolução, Melo Antunes e Vasco Gonçalves, acaba de ser editado o volume (volumoso) da entrevista a Vasco Lourenço (*) que, como os outros, só consegui ler de um fôlego. Este é, sem dúvida, o depoimento mais revelador e mais significante. Não só porque Vasco Lourenço, excepto no episódio do levantamento militar em si mesmo (estava desterrado nos Açores, o que o levou a ceder o comando operacional do 25 A a Otelo), esteve “em todas” (na cúpula da conspiração e nas cúpulas militares em todos os acontecimentos posteriores à revolução, incluindo a contra-revolução) como desempenhou nelas o papel compósito do organizador, agitador e clarificador político. Naturalmente, como todos os militares a partir do desdobramento crítico do MFA em fracções (verdadeiramente, o MFA sempre foi um aglomerado de fracções, inclusive na sua génese), o que foi uma sucessão ininterrupta, Vasco Lourenço foi homem de fracção, jogando nas regras do jogo grupal, o do grupo que foi mantendo e depurando. Mas, pesem os acidentes de percurso, Vasco Lourenço foi um vencedor quase permanente (só perdeu quando a direita que saltou da cortina do “novembrismo” se apoderou dos efeitos do 25 de Novembro, marginalizando quase todos os que, de algumas formas, haviam construído e desconstruído o castelo das várias revoluções – ou golpes – que fizeram “a revolução”, em vingança tardia sobre os “capitães de Abril”). E por isso, envolvido nos cordelinhos das conspirações e das contra-conspirações, logo um depositário de memória privilegiada sobre os principais acontecimentos, os mais e os menos conhecidos. Vasco Lourenço, possuidor de uma memória prodigiosa, dá aqui, para mais com uma frontalidade que muito enriquece o depoimento, um contributo para o entendimento do 25 de Abril e acontecimentos preparatórios e conexos de consulta obrigatória para uma visão integrada e abrangente do MFA na liquidação da ditadura e na construção da democracia enquanto projecto de legitimação da soberania através da via eleitoral. Em que ressalta, repito, o talento da entrevistadora-guia.
 
Um outro livro lançado em simultâneo com a entrevista de MMC a Vasco Lourenço, o da historiadora Joana de Matos Tornada (**), um resumo de uma tese de mestrado, dedica-se especificamente ao “ensaio” (ou “antecipação) falhado do 25 de Abril, o golpe de 16 de Março de 1974 de oficiais do MFA do quartel das Caldas da Rainha. Como episódio que ganhou uma relativa irrelevância, porque falhou e porque foi abafado pela vitória nos acontecimentos de 25 de Abril, ele tem sido insuficientemente prezado. E, no entanto, difícil é entender o 25 de Abril e o papel posterior dos “spinolistas” (golpistas incorrigíveis até o 11 de Março de 1975) sem se iluminar o que esteve dentro e por trás do 16 de Março. Num misto de recolha documental e de depoimentos, o livro de Joana Tornada tem uma acuidade que o recomenda (nomeadamente quanto ao controlo de perto pela GNR e pela PIDE). Mas, infelizmente, a obra estampada é um desastre para a leitura por infelizmente, não ter havido o devido cuidado, ou talento, em refazê-lo a partir do texto da tese de mestrado. O resultado editado é um martírio para o leitor (***), recurso excessivo e constante para as notas, repetições atrás de repetições, um estilo de escrita pesado e sem mérito literário. Com tempo, talvez uma segunda edição permita melhorar a obra, trabalhá-lo para leitura, permita salvar o essencial – o seu contributo útil para o melhor deslindamento de um episódio essencial no entendimento do MFA e da resposta da ditadura.
 
(*) – “Vasco Lourenço, do interior da Revolução”, entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Editora Âncora.
 
(**) – “Nas vésperas da democracia em Portugal, o golpe das Caldas de 16 de Março de 1974”, Joana de Matos Tornada, Edições Almedina.
 

(***) – As 312 páginas do livro de Joana de Matos Tornada deram-me cinco vezes mais de “dias de leitura” que as 575 páginas da entrevista a Vasco Lourenço.

 

Publicado por João Tunes às 23:50
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5 comentários:
De José Eduardo de Sousa a 4 de Maio de 2009
O que diz, a propósito do livro de Maria Manuela Cruzeiro, é muito interessante. E também como o diz. E, meu caro João Tunes, não estou a jogar o jogo dos compadres.
As fontes da História e o como se escreve História é algo difícil de conjugar com o como se cria e se faz a História. Eu, quando leio algumas coisas sobre aquilo em que “participei” ou de estive próximo, fico-me num espanto. Mas como, o quê? Como é possível virem dizer isto assim e esquecerem aquilo assado? Como é possível aviarem estas ideias, estas interpretações? Em contrapartida, noutras que se passaram além da minha área de implantação, exclamo: mas é, foi assim? Sem indignações de maior...
Quando li o livro de António José Telo, sobre a nossa história depois do 25 de Abril, e vi as páginas sobre aqueles dez anos de cavaquismo, numa admiração de descoberta, (ou de encobertas!), e grunhindo hum! Hum!, senti o meu coração, empedernido, fundir-se um pouco e pingar uma gota de arrependimento. Nem assim, deixei de amar menos aquela criatura. Afinal, Cavaco sempre foi metido na História, em vez de constar em simples Anais (ou será anuais?).
Os depoimentos orais são importantes, embora acrescente mais uma leitura possível e mais uma temporalidade. A do historiador e a do memorialista; o tempo dos factos, o da sua recordação e a de quem escreve. Um historiador, por muito que coce a cabeça para ver as erupções que daí advirão, é um eu, aqui e agora. A História em cada tempo é um nós, vós, aqueles, espécies de calçado usados no trajecto de cada geração.
Um blogue, não sei se Caminhos da Memória, abordou alguma coisa das metodologias da História, das sucessivas refracções a que está sujeita, etc. De forma fruste, julgo, possivelmente muito enganado. Tenho pena de não me encontrar teoricamente preparado para avançar por tais trilhos.
Resumindo: eu pergunto-me, algumas vezes, como é que futuramente se fará a História actual com os materiais que se vão acumulando. Com aqueles – alguns dos– que nós vemos a acumularem-se.

Não era sobre isto que eu ia dizer alguma coisa: não era sobre o que o João Tunes diz a propósito do livro, mas sobre o próprio livro da MMC. A sua apresentação é excelente. Vou lê-lo.
Eu li o livro do Melo Antunes, mas não o de Vasco Gonçalves de que até ignorava a existência. O Melo Antunes era um homem contido, de pensamento trabalhado e depôs mais próximo dos tempos lembrados. Com uma contenção e reservas que eu espero não encontrar no Vasco Lourenço. Pelo que me lembro, apesar daquela espécie de neblina do depoimento de Melo Antunes, eu também li num instante aquele livro de MMC.
Não acho grande mérito em ler com facilidade os livros (um livro deve ser difícil para que nos aproveite) , mas encontro mérito, aí sim, em quem consegue escrever para que se seja lido com a maior facilidade possível.
Um abraço em fim de conversa
Sousa
De José Eduardo de Sousa a 4 de Maio de 2009
O abraço não vai em fim de conversa. Vai no fim do meu paleio. Do meu e só do meu.
Sousa
De João Tunes a 5 de Maio de 2009
Tento resistir a comparar figuras. O comando político-militar da revolução era composto por figuras díspares, o que se entende por na sua maioria (Melo Antunes e Vasco Gonçalvez à parte) ainda pouco tempos antes não terem uma ideia política estruturada. E era inevitável que a espiral de politização súbita e acelerada desse no que deu, sobretudo uma miríade de posicionamentos e procedimentos. Para se ter uma ideia do caldo em que as posições e as cisões foram decididas há que entender cada uma das partes. Se Costa Gomes e Melo Antunes continuam a ser enigmas, Otelo é o caos pretencioso, Eanes o manhoso não revelado (ele que conte os outros 25 N que ficaram ocultos), os Vascos (Gonçalves e Lourenço) eram e são os mais claros e perceptíveis. VG pela bolchevização tão generosa quanto infantilizada, VL por ser o protótipo do militar em construção como político. Ou seja, o mais "puro" enquanto castrense. E mais político e pragmático que a sua pose e expressão revelam. E esteve em todas como vencedor até o pós-25 N. Daí que o seu depoimento seja incontornável.
De José Eduardo de Sousa a 6 de Maio de 2009
Fez-me lembrar o Oscar Wilde. Às tentações não se resiste, obedece-se. Até era giro essa comparação de personalidades e a que fez, por essa sua resistência à tentação, ficou aquém do gosto que poderia proporcionar. Mesmo assim ainda ficou gira.
Comparar essas personagens entre si! Excelente. E porque não acrescentar algo mais: pegar em cada uma delas e tentar vê-las enquanto foram militares em guerra, como conspiradores, depois ou durante essa guerra, a seguir, pela ocasião em que foram golpistas, quando deram outro salto e passaram a homens do Poder ou mesmo de Estado e, finalmente, na sua actual natureza de cidadãos. Porque será que me lembro aqui particularmente do Costa Gomes?
O Otelo é um caso à parte. De causar vertigens por aquele seu corrupio desvairado. Mas todos foram rodopiando mais ou menos velozmente. Acabaram por ser produtos da sua própria criação. O 25 de Abril fê-los.
Eu gostava de conhecer verdadeiramente qual era a preparação teórica de Vasco Gonçalves. Posso estar enganado, mas com toda a sua generosidade e estando entontecido pelo que constantemente se lhe ia abrindo em frente, apenas tentaria aplicar a “vulgata marxista”. Parece-me. Caso diferente do do Melo Antunes que tinha aquela complexa derivação para o Gramsci e que era mais labiríntico e maleável que uma rígida muralha d’ aço.
Hoje penalizo-me pela minha atitude política e, vergonha, pela atitude, até pessoal, em relação ao Vasco Gonçalves. Era homem para destruir e deitar fora. Infelizmente, eu estava em má companhia. Só que eu o via como um empecilho no processo revolucionário e esses outros, “meus companheiros” como um desvairado e perigoso niilista que trazia a subversão em cada grama do seu corpo e em cada sílaba das suas palavras. Ai,ai que lá se ia de vez a velha ordem estabelecida.
Concordo com o que escreve, como se vê. E aceito, convencido, de que VL é o tipo que tem ainda a dizer coisas indispensáveis para conhecer e apreciar . E que o fará de forma clara, sem meiguices, nem jeitinhos.
Gostaria de continuar com este tipo de apreciações, mas há agora coisas que me esperam e vou-me a elas.
Estou a ler os “Tribunais Políticos que tem imensas páginas verdadeiramente interessantes, no meio de outras que não nos põem, assim, numa grande agitação. Enfim, o livro corresponde aos estudos com a mesma natureza.
Anedoticamente, não encontro, na net e no site da FNAC, o livro depoimento do Vasco Lourenço, que desejaria comprar para o ler a seguir, metendo-o à frente daqueles que estão esperando desde há muito tempo.
Um abraço
De João Tunes a 7 de Maio de 2009
Ui, a quantidade de fios de conversa que vc meteu em cima da mesa...

Mas hoje fico-me pelo abraço.

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