Falar do futuro do Iraque em termos de projecção de avaliação-julgamento de erros passados (cometidos por eles e contra eles) pode ser bom para exibir medalhas de razão mas, do ponto de vista das pessoas iraquianas, não passa de um exercício cínico. Cinismo esse que atinge o cúmulo quando se ostentam alegrias mal disfarçadas com o aumento imparável de vítimas do fraticídio iraquiano.
O “erro americano” (melhor, “erros”) no Iraque somou-se a outros “erros”. A própria existência do Iraque, enquanto xadrez de identidade nacional, deve-se a uma mera “resolução pós-colonial britânica” (parecida com a “solução Jugoslávia”). Tal como a fabricação da independência do Koweit. E aquele mosaico sunita-xiita-curdo sobreviveu durante décadas apenas por mercê do autoritarismo implacável e despótico do Partido Baas que foi capaz de o exercer porque o partido era uma emanação de uma facção dos oficiais das Forças Armadas e se apetrechou de uma imensa máquina repressiva disponível para a prática do genocídio quando fosse caso disso. E a “estabilidade iraquiana”, com Sadam, suportou-se numa supremacia sunita (minoritária) opressora das regiões e identidades xiita e curda. Nem o facto de a religião muçulmana ser praticada pelas três “partes” foi elemento unificador – a rivalidade entre os cismas xiita/ sunita foi e é mais divisor que o poder unificador do Corão comum, os curdos, mesmo islamizados, não são árabes e estão retalhados em três opressões (iraquiana, iraniana, turca).
A Jugoslávia aguentou-se sob a ditadura de Tito (um croata a dirigir uma supremacia sérvia) mas desfez-se, no caso com a morte do ditador, em conflitos ainda não terminados assim que as rivalidades e as memórias dos crimes cruzados tiveram espaço de desenvolvimento. E não se vê quem explicitamente (exceptuando os órfãos do “socialismo real”) defenda o regresso da Jugoslávia à ditadura para reunificar os cacos étnicos balcânicos. Pelo contrário, há expectativas benevolentes para com a finalização da fragmentação, como foi o caso último do Montenegro e será o próximo caso do Kosovo.
Mais do que prolongar-se indefinidamente a “acusação dos erros americanos” (que foram clamorosos e inadmissíveis), o caos iraquiano (com o seu cortejo diário de vítimas e mais vítimas) impõe que se olhe de frente a realidade de que o Iraque vive uma sangrenta guerra civil que urge por termo. E a ligação da “invasão americana” com a actual situação de fatricídio no Iraque, é válida se encarada como uma antecipação do inevitável para quando Sadam morresse ou caísse ou, por qualquer razão, se desfizesse a supremacia ditatorial do Baas. Ou seja, quando lhe chegasse a “hora jugoslava”. Que chegaria, com ou sem invasão. E, hoje, não são os “invasores” a fonte dos problemas iraquianos. É isso sim, a forma como, a tiro e á bomba, os iraquianos se estão a matar uns aos outros por causa de rivalidades endógenas.
O fim da guerra civil no Iraque, a solução política para tal, deve predominar como sensatez na avaliação do problema iraquiano. Que deve ser pensado em termos de futuro pacífico – para a região e para os habitantes do Iraque. O resto é querer levar a julgamento, esgotando-se aí, o ajuste de contas político-clubista com o relógio da história e os erros passados.
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