A historiografia sobre o colonialismo é fraca e frágil. Sobre a brutalidade colonial, a concreta, a sofrida pelos africanos, a infligida pelos portugueses, pior. Se formos, então, para a perspectiva africana, chegamos à beira do deserto. No conjunto, se somarmos uns tantos dedos de persistência, boas vontades e exotismo, contamos a súmula do rescaldo da memória, historicamente trabalhada, dos nossos quinhentos anos de presença em África.
Do ponto de vista do povo colono, nós, temos o que se julga bastar para tornar nebulosa e distante uma marca a merecer pouco orgulho e alguns arranhões – esparsas obras de referência com valor científico e documental mas sem a abrangência da apreciação global e abrangente, umas tantas memórias de saudade, feitiços e ressentimento dos espoliados das supremacias grandes e pequenas, algum material de testemunho e de ficção sobre a guerra colonial. Somado, tão pouco que até parece que nem por lá passámos. Por preguiça ou por uma espécie de amnésia conveniente?
Surpreendente à primeira vista, é haver uma míngua historiográfica ainda maior no lado africano. Há razões objectivas para isso – o terem estado do lado de fora nos mais variados domínios, a predominância da tradição oral sobre a da escrita, a míngua de quadros dominando a metodologia necessária, a falta de materiais de consulta em arquivos organizados ou fora deles e a prioridade em construir e aguentar Estados e em que se dilui o significado da preservação da memória como património de um passado. Também, certamente, por factores subjectivos não muito límpidos – resistência a juntar as pontas do passado de resistência, nem sempre lineares, confluentes e heróicas, receios de que nos retratos retroactivos das novas camadas dominantes se mostrem, mais que as valentias, umas tantas vergonhas que se preferem esquecer ou saia demasiado saliente a aberração das arrogâncias, esbulhos e benesses dos tempos actuais.
O certo é que, para Portugal e para os países africanos libertos do colonialismo português, o período 1950-1975, é não só uma fase marcante das histórias comuns (com traços indeléveis sobre o futuro reconstruído de todos) como, por outro lado, uma peça imprescindível para se compreender África. E uma África que, por muito que os portugueses procurem esquecer, representando o papel, em mimetismo de fresco, de europeus integrais e dos sete costados, está entranhada no ser português e, se fugimos de África (sendo de lá corridos), ela vem ter connosco, sinalizando a sua presença com as sucessivas e inesgotáveis levas de imigrantes. E, assim, África está cada vez mais ao nosso lado, entre nós.
O elo mais fraco dos testemunhos sobre a realidade colonial pertence aos africanos que a sofreram e dela tiveram consciência, resistindo-lhe em maior ou menor grau. Se às dificuldades já referidas quanto ao registo africano do seu passado histórico na segunda metade do século XX, acrescentarmos o facto de que as testemunhas vivas irem rareando porque consumidas pelas leis da vida (no quadro de povos com horizontes de vida mais baixos que os europeus), teremos a aproximação da ideia de catástrofe histórica perante a fatalidade de eles, e nós por tabela, termos de viver com um enorme buraco no entendimento sobre o passado colonial (catástrofe que só alivia os interessados nesse buraco histórico).
Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (*) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas. A Editora ASA acaba agora de editar (**) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.
Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva “à tira”, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.
Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que “nos sofreram” em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.
Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar).
(*) – “A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974)”, Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar
(**) – “Memórias do Colonialismo e da Guerra”, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA
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