Voando com asas abertas por efeito de perspicácia alheia, o texto de Rui Bebiano envia-me para a lembrança de outro mito romântico e libertário que foi alternativa, mas mantendo similitudes vincadas, ao mito cigano e que os tempos sepultaram com a marca da viagem de esquecimento sem regresso. Refiro-me ao maltês que ecoou no imaginário alentejano feito cultura pela mão dos neo-realistas e que Manuel da Fonseca, sobretudo ele mas não só, transformou em marca literária de excelência (leia-se aqui um hino poético em sua honra passado a canção por Vitorino). Este vagabundo, uma espécie de homeless camponês, com evidente inspiração chaplinesca, sem marca étnica que não a da rebeldia, tipificado como corpo de resistência à ordem latifundiária. Mas, igualmente como Charlot, recusando o alinhamento social e os códigos de compromisso ou luta, vivendo da poesia do luar feito almofada e cobertor e de pequenos roubos de alimentos em estado bruto para matar a fome. Permanentemente acossado por guardas republicanos, o maltês foi, para a esquerda desejosa que a ordem fascista se desfizesse, um sucedâneo à “inconsequência cigana” (que Rui Bebiano muito bem configura num julgamento de severidade marxista) necessário para condimentar a sede de romantismo tendencialmente contrariada pelo pragmatismo da eficácia política. Isto enquanto fez de ponte, para os urbanos letrados e antifascistas, com o distante camponês alentejano, esse proletário despojado até à fome, envolvido numa camaradagem comunista que era a única em que confiava e que tinha como sua mas com as suas raízes culturais bem mergulhadas num caldo misto de herança muçulmana e do anarco-sindicalismo que o tinham iniciado na politização, marcando-o desde o advento da República se não antes. O maltês estava muito longe do estereótipo do camponês proletário que lutava pelas quarenta horas mas era integrável na idealização radical de rejeição do latifúndio sem o incómodo da tentativa baldada de domesticar a figura compósita do cigano. Servia às mil maravilhas como compromisso entre o realismo político da luta e a transgressão da permanência do sonho romântico que muitos não despegavam da ideia da revolução. Depois, como se sabe, o último maltês não foi morto por um guarda republicano, nem por pancadas de um feitor, também não morreu de torturas numa masmorra da PIDE. O último maltês faleceu de morte política com a Reforma Agrária, deitado numa cama a cheirar a alfazema e alecrim, comendo comida repartida, após uma reunião do partido que lhe liquidou, por suspeita de ser atrevimento de dissidência, o olhar de vagabundo com que teimava imitar Charlot.
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Adenda: Agradeço, pelo exemplo de solidariedade simplificada pela tecnologia, a música que aqui faltou e que a Joana Lopes, com a sua costumeira eficiência, emprestou a este post. Abraços, pois, um para o inspirador e outro para a sonoplasta.
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