Segunda-feira, 16 de Março de 2009

A MEMÓRIA TEIMOSA, MESMO ESFARELADA (1)

 

Só por crédito à santa virtude da benevolência se pode entender esta sentença de amor hispânico de Ana Paula Fitas: «Decorridos 70 anos da Guerra Civil de Espanha que "nuestros hermanos" não esquecem, insistindo na investigação e descoberta de um passado que se recusam a branquear». Dito assim, na sua abrangência generalista, até parece que na Espanha democrática a preservação da memória histórica da ignomínia da guerra civil e do franquismo foi e é uma espécie de autoestrada sem portagens. Não foi nem ainda é, antes pelo contrário. O regresso de Espanha à democracia em 1975, conseguido muito pelo terror que os franquistas tiveram perante o pesadelo libertário dos cravos plantados aqui, na única província peninsular não subordinada a Madrid, um ano antes, também porque Franco estava morto e enterrado deixando um rei por si escolhido a lembrar-lhe o mando, teve um preço alto e que foi pago com exigência acordada de amnésia que as forças democráticas espanholas (todas) pactuaram por pragmatismo que a história há-de avaliar em termos de custos e ganhos. PSOE e PP alternaram-se anos a fio no poder e o pacto da amnésia foi cumprido como acordo inviolável de cavalheiros, enquanto o rei indicado por Franco foi alcandorado a um segundo trono, este legitimado pelos novos democratas, o de ser garante do regime democrático por não ter alinhado num putsch fascistóide, após ele ter falhado, dirigido por saudosistas histéricos da ordem falangista armados de pistolões. Socialistas, comunistas, democratas de várias estirpes, mesmo revolucionários de antigas cepas, ainda interiorizando medos velhos acerca da possibilidade do regresso da velha besta, cumpriram com esmero o nojo pelo passado, para não despertar os “demónios dos ódios espanhóis”. A guerra civil e o franquismo foram selados como tabus. Os arquivos das décadas de despacho de Franco como Caudilho de Espanha, portanto contendo documentos do Estado, foram considerados como “privados” e entregues à custódia hermética da sua família numa espécie de jazigo de memória intitulado “Fundação Francisco Franco”. E o resto da documentação oficial, dizível como “provas dos crimes” cometidos por Franco e a sua gente, ficou insepulta e a apodrecer em arquivos abandonados mas vigiados, inacessível aos historiadores. Durante muitos anos após o regresso á democracia, os historiadores, os jornalistas e outros memorialistas, os familiares dos fuzilados pelo franquismo, que quisessem abordar, com suporte documental, o período espanhol 1936-1975 ou se socorriam da literatura de propaganda da ditadura, incluindo as obras unicistas dos historiadores de ideologia franquista, ou às obras publicadas por historiadores estrangeiros sempre coxas em fundamentação no acesso às fontes. Foi esta a (des)memória paralítica, servida desde Gonzalez até Aznar, em que cresceram as gerações de espanhóis experimentadoras da neo-democracia espanhola implantada após Franco ir morar para o condomínio de saudade em Vale dos Caídos. Ao mesmo tempo que outro tabu, este mais grotesco e mais macabro, herdado dos mandos dos que preferiam o grito de “Viva a Morte” ao de “Viva a Cultura”, permanecia: o da eternização profana dos muitos milhares de insepultos - os esqueletos dos fuzilados em nome de Deus, de Espanha e de Franco - espalhados por fossas e valetas das estradas.
 
Neste tempo de história de vilanias pactuadas, desde a tosca à sofisticada em concórdia e boa-vontade, houve, como disse em trova um poeta dirigindo-se ao vento que passa, alguém que resistiu e soube dizer não. Foi uma minoria isolada, diga-se e em seu abono. Mas persistente, confiante na força da memória. Uma dúzia de historiadores jovens (a juventude, de tempos a tempos, segrega irreverência lúcida) inconformados com o mister de fazer uma história com silêncio no lugar das fontes e alguns familiares de fuzilados inconformados com a fatalidade de saberem os seus mortos eternamente espalhados anonimamente por valetas de estradas, remaram contra a maré e impuseram a evidência do absurdo de se construir uma maturidade democrática sobre os caboucos da amnésia. A liderar esta pequena legião de inconformados com a negação da memória, dois ou três jovens, netos ou bisnetos de fuzilados que aliavam a esta condição uma outra que confluía na mesma convicção de apego à verdade histórica, a de serem historiadores. Incompreendidos, olhados de lado, verberados sob a acusação de pretenderem que a Espanha voltasse aos banhos de sangue por ódio, em vez de desistirem, teimaram e evoluíram para a construção de redes gregárias através do associativismo de defensores da memória. O poder de Espanha, embora hesitante e compromissório, com a queda de Aznar e a subida de Zapatero, acabaria por contemporizar e adoptar uma “Lei da Memória Histórica” que vai de encontro, embora ambígua e em sinusóide, a parte das reivindicações dos historiadores de História e dos familiares dos fuzilados insepultos. Se hoje, em Espanha, a memória ainda não tem estrada para andar, longe disso minha cara Ana Paula Fitas, há um caminho de terra batida (feita pelo caminhar dos pés dos honrados pioneiros do direito à memória) que é a melhor desforra contra o sangue que o matadouro de Franco espalhou nas terras espanholas. E a divisão política à volta da concretização da “Lei da Memória Histórica” separa hoje o que deve separar, a esquerda herdeira dos fuzilados por se baterem pela República e pela Democracia dos herdeiros de Franco, acantonados entre as hostes do PP. Felizmente, acabou-se a tortilha de cebola e amnésia com que se pactuou o silêncio histórico em Espanha. Basta o que basta, porque continua o rei (por Franco), o que não é pouco.
 

Nesta saga, o acesso aos arquivos continua a ser problemático mas vai dando passos. Um dos últimos a poder aceder-se, os entregues à custódia militar por ser nesta esfera que se procediam (em "conselhos de guerra" constituindo tribunais militares) os julgamentos de quem se opunha a Franco ou disso era suspeito, sofre de doença de abandono e do efeito dos maus tratos. Os papéis esfarelam-se ao serem manuseados, muitos já não se conseguem ler, estão numa molhada labiríntica e respeitam apenas a parte dos exercícios justiceiros, mas os traços marcantes da ignomínia e arbítrio sanguinário da justiça franquista, estão lá. O suficiente para que não se esqueça.

 

Publicado por João Tunes às 16:22
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