
«Arvorada durante anos em bandeira do progresso, a "independência" guineense transformou-se num dos maiores logros do nosso tempo. A causa nacionalista, aliás um conceito reaccionário por excelência, mal disfarçava então os velhos demónios xenófobos e tribalistas que não tardaram a soltar-se mal terminou o 'fardo do homem branco' em África.»
é profundamente injusto. Porque o foi, não sei nem isso será o importante. Está escrito, escrito está. Com uma razoável quantidade de afirmações que o conhecimento histórico contraria.
Entre as desconformidades, dizer-se que “a causa nacionalista” é um “conceito reaccionário” não será a menor. Porque o “nacionalismo” só é um retrocesso quando se atingiu um grau maduro de integração plural e este não se exprime, na prática, no domínio de uma parte sobre as outras. Quando há um domínio étnico ou regional, o “nacionalismo” da parte (ou partes) oprimida(s), enquanto vontade de sacudir predomínios, é não só legítimo como desejável e progressista, para os dois lados do desequilíbrio (quem oprime também não é livre). Foi o predomínio sérvio titista (dirigido por um croata!), assente numa cadeia hierárquica sérvios/croatas/…/bósnios-albaneses que desfez a Jugoslávia até ao … Kosovo. E não são os tibetanos que são os “reaccionários” por quererem libertar-se da opressão chinesa, esses tais moram em Pequim.
Sobre África, falar-se de nacionalismo e de tribalismo sem se falar da Conferência de Berlim que desenhou a régua e esquadro as colónias e os futuros países, retalhando etnias como quem corta bifes, é omitir o essencial e contaminar irremediavelmente qualquer discurso sobre o assunto. A Conferência foi a grande maldição que os colonos lançaram como impossibilidade histórica da autonomia africana. Serviu às potências coloniais enquanto o foram porque enfraqueceram cada etnia por si, ao reparti-las, e segregaram espaços em que etnias transportando séculos de rivalidades recíprocas foram obrigadas a um condomínio repleto de rancores, os quais foram sempre alimentados e geridos e cuja perpetuação foi sempre a melhor segurança para o prolongamento do poder colonial. Pior que isso, a repartição colonial deixou desenhos contaminados de Nações como herança pós-colonial, na medida em que cada uma delas era e é um mosaico de contradições inter-étnicas, muitas delas explosivas. É disso ainda que se trata quando verificamos que, em muitos casos, o nacionalismo africano descamba no retrocesso do tribalismo e este no genocídio mais brutal e sangrento. Se, sobretudo quanto às colónias africanas portuguesas, adicionarmos a celebrada “mestiçagem” encontramos mais uma herança pérfida deixada pelos colonos em África. Porque os “nossos mestiços” foram uma expressão de domínio (a sexualidade de uma colonização essencialmente masculina): estes eram sempre filhos de pais brancos ou mestiços (logo, assimilados com o poder colonial) com uma negra (nativa, do meio dominado), constituindo uma franja intermédia, com conflito de identidade, susceptível de conflituar e ser conflituada pelos dois pólos, o colono e o colonizado.
A Guiné-Bissau é, ainda, um caso colonial (e pós-colonial) peculiar quanto às agravantes nas circunstâncias. Após a fase esclavagista (e só teve importância nessa fase), a Guiné foi sempre uma colónia insignificante para o império, mais simbólica que outra coisa. Inóspita, pobre, mal ocupada e com fraquíssima presença colonial. Mas com mais de trinta etnias em condomínio forçado num espaço habitável exíguo (se o território é pequeno, pouco sobra se descontarmos os cursos de água e os pântanos), muitas delas ali depositando os sobreviventes de êxodos de tribos imperiais derrotadas ou de tribos oprimidas, uns e outros agarrados à sobrevivência das suas culturas e às rivalidades entre si. Se o Portugal colonial nunca teve força e inteligência suficientes para valorizar o seu património colonial, a Guiné foi, desse contexto, o parente mais pobre e mais abandonado. E no mosaico étnico guineense, dadas até as dificuldades de ocupação militar e administrativa desta colónia, o que o colonialismo português sempre ali fez (até ao dia da sua largada) para assegurar o seu domínio foi jogar nas rivalidades étnicas colocadas no terreno, principalmente os ódios recíprocos acumulados entre as três principais etnias: fulas, mandingas e balantas. Incorporando os fulas (segunda etnia em número, depois dos balantas) como aliados; jogando nas diferenças culturais e religiosas (fulas e mandingas, islamizados; balantas, animistas); estagnando toda a evolução cultural e sócio-económica a fim de que permanecessem as estruturas vernáculas de socialização e poder social mais os rancores ancestrais das velhas rivalidades. A esta gestão da divisão, somou-se não se permitir a criação de qualquer elite que sustentasse a emancipação cultural, administrativa e política, e a pequena elite urbana, a dos empregados, dos funcionários e dos pequenos comerciantes, foi sobretudo preenchida por mestiços importados de Cabo Verde (compensando a pouca apetência de colonos europeus para se fixarem na Guiné). É neste quadro que o PAIGC (liderado por um guineense mestiço, filho de pai caboverdiano) se situa no terreno da luta pela independência e tendo de se “contaminar” com a própria realidade étnica, cultural e social desenvolvida e consolidada pelo poder colonial: com os fulas do lado colonial, o PAIGC explora os ressentimentos dos mandingas e balantas (as principais etnias de suporte à luta armada), procurando que o ódio aos fulas “evolua” para o ódio aos colonos, dota-se de uma elite dirigente essencialmente constituída por caboverdianos (citadinos, com experiência profissional, escolarizados) que são recrutados na perspectiva de uma Pátria Guiné-Cabo Verde. Nino Vieira (guineense citadino, operário, da etnia papel, uma média etnia habitando a região de Bissau) ascende às mais altas responsabilidades no PAIGC pelos seus méritos militares mas também e sobretudo para “colorir” uma elite guerrilheira demasiadamente composta por mestiços em terra de forte domínio populacional da negritude. Perante esta situação, o poder colonial, cuja base de domínio anterior muito se sustentara pela utilização de caboverdianos como quadros administrativos que alimentavam a burocracia colonial, passou a explorar até à exaustão o racismo anti-mestiços (no caso, anti-caboverdeano), tentando transferir para os ombros destes o objecto do ódio primário aos exploradores, como forma de isolar a direcção do PAIGC e desagregar a sua unidade interna e a sua capacidade operacional que tantos estragos causava à máquina militar colonial.
Caro Pedro Correia, não é justo quando diz que “os velhos demónios xenófobos e tribalistas que não tardaram a soltar-se mal terminou o 'fardo do homem branco' em África”. Esses “velhos demónios” são herança nossa, enquanto fomos potência colonial que, nos quinhentos anos de colonização, nunca parámos de dividir para reinar. E deixámos, na Guiné mas não só, uma “prenda” de independência envenenada, saindo após uma guerra colonial prolongada e deixando bombas de ódio por explodir mas prontas para isso. Como agora se viu na Guiné.
Obviamente que os africanos não podem ficar eternamente isentos de responsabilidades ao não conseguirem resolver as heranças coloniais e afirmarem-se no contexto de um mundo globalizado em que todos os cordéis são puxados fora de África. Mas para quem, pertencendo à elite do mundo, ainda tem o Kosovo, o País Basco, a Catalunha, a Pátria Flamenga, a Irlanda, a Ossétia, etc e o que esteja mais para vir, para resolver, digamos que é um exagero de exigência querer que se resolva em trinta e cinco anos de autonomia empobrecida aquilo que nos serviu, que alimentámos e só agravámos em quinhentos anos de domínio.