Numa iniciativa louvável, na noite do dia em que a Revolução Bolchevique comemorava os seus 89 anos, teve lugar em Lisboa um interessante debate sobre o célebre Relatório Krutchov apresentado ao XX Congresso do PCUS, em 1956, e que representou a traumática denúncia (parcial e instrumentalizada) dos crimes de Stalin. O mesmo e célebre documento que abalou o comunismo mundial e que, curiosa e esclarecedoramente, merece do PCP [em princípio, o principal herdeiro deste património], o tratamento dado aos “documentos malditos”, ou seja, a sepultura do silêncio. Um dos intervenientes no debate, Raimundo Narciso, disponibilizou agora a versão integral do seu contributo e aconselho a sua leitura pelas muitas questões e reflexões ali colocadas.
Para além dos dados históricos e interpretativos, sobre o estalinismo e as fases posteriores do krutchevismo, do retrocesso para um neo-estalinismo (com Brejnev, etc), depois culminado no gorbatchismo como doença terminal do comunismo imperial, interessará sobretudo reflectir, para pensar o presente e o futuro políticos, se o estalinismo e as suas sequelas, descendências e variantes, foram acidentes de “erros e crimes” (evitáveis e corrigíveis, portanto) ou se pertencem como patologia à teoria e prática marxista-leninista. E se o problema do estalinismo, afinal, não passa de uma fixação paranóica criminosa de uma patologia ideológica. O que, levado às últimas consequências, empurra para a reflexão se os entorses e os dramas não vêm mais de trás, implicando bater á porta dos legados de Marx e Lenin (luta de classes e acção política, papel do Estado e dos partidos).
Raimundo Narciso, da sua parte, colocou assim o problema do legado e da retrospectiva sobre a experiência global do socialismo real:
“Na minha opinião os impasses do socialismo real têm na sua base a incapacidade demonstrada para resolver as questões de desenvolvimento económico que possibilitassem um nível de bem estar maior e mais harmonioso, isto é com justiça social, superior ao capitalismo. Mas a chave para resolver este problema de fundo está, no meu modesto entendimento, na super-estrutura política, está na liberdade individual. A superação das dificuldades económicas pressupõe o contributo livre e criativo à escala de massas. Sem mais e melhor democracia sem mais e melhor liberdade individual do que aquelas que gozam as grandes massas da população nos países capitalistas, a sociedade que se quer socialista não poderá vencer.”
”Não sei se era possível equilibrar a defesa da liberdade e da participação democrática com a defesa do Estado do cerco e da guerra que lhe era movida pelo campo imperialista.”
”Por outro lado como é do conhecimento, não diria geral, porque não é, como se vê por aí, mas de conhecimento muito generalizado, os ideias progressistas de reforma social, chamemos-lhe socialismo, têm de abordar uma realidade social completamente distinta das dos tempos de Marx, Lenine, Krutchov, ou mesmo de Gorbatchov.”
Noutro registo e segundo informa o Tiago Barbosa Ribeiro, José Saramago terá apelado, via recente entrevista ao jornal “Sol”, a que seja dado ao comunismo “uma segunda oportunidade” para que este prove as suas virtualidades sem cometer “erros nem crimes” (a propósito, TBR corrige sarcasticamente que se trataria não de uma segunda oportunidade mas da … “36ª tentativa”).
Pior que Saramago, no seu desgraçado voto de exercício de purificação exorcista (em que uns tantos milhões de pessoas pagariam as custas da experiência rectificante), só mesmo o “Avante”, em que exaltando todo o património do que se passou na URSS, analisa assim a lamentada implosão:
“O fracasso dessa experiência histórica, com o desaparecimento da União Soviética e o retorno do capitalismo à pátria de Lenine, constituiu um grave retrocesso histórico, uma tragédia civilizacional cujas consequências já conhecidas permitem adivinhar as que se avizinham.”
”Esse fracasso, cujas causas profundas importa continuar a avaliar, teve origem num vasto e complexo conjunto de factores, donde emergem: a violenta e persistente ofensiva desencadeada contra a Revolução, desde o seu início, por parte do capitalismo internacional; as práticas de afastamento e afrontamento dos ideais comunistas – por isso de perversão da democracia - por parte de governantes que assim se isolaram das massas trabalhadoras e populares, suporte essencial da Revolução; a existência de dirigentes partidários e de governantes que, traindo a confiança que neles depositaram o partido e o povo, se passaram para o campo inimigo, passando a combater o que antes defendiam e a defender o que antes combatiam.”
Ou seja, para o PCP, agora mesmo, o problema esteve no fracasso de uma experiência exaltante, esse sim grave, admitindo que, pelo caminho, algo não correu perfeitamente, mas o pior da fita, indubitavelmente, foi Gorbatchov (e talvez, subentendidamente, Krutchov também apanhe por tabela).
Diferentemente dos que nada querem corrigir, meros candidatos a copistas de experiências falhadas com custos acumulados de atrasos e perdas de milhões de vidas, e os que anseiam por uma quimérica segunda oportunidade purificada, Raimundo Narciso coloca o centro da questão na compatibilidade desejável do socialismo com a liberdade e a democracia (mais e melhor liberdade, mais e melhor democracia). Até de que esta é a única forma de se atingir o socialismo. No fundo, o que separa Raimundo Narciso do PCP e de Saramago, é que, no conflito democracia versus revolução, e embora tenha fugido da abordagem da questão da revolução, ele opta pela democracia.
Concordando com o essencial do que escreveu Raimundo Narciso, excepto quanto ao papel limitador e desculpabilizante para com as circunstâncias do “cerco imperialista”, julgo que a essência da compreensão da patologia marxista-leninista (e ela nasce em Lenin e não com Stalin) assenta na consideração de três factores base: a) em regime com liberdades, há campo legítimo para projectos revolucionários? b) os partidos correspondem, ou devem corresponder, à arrumação das classes sociais? c) é admissível o genocídio social como forma de resolver as contradições de classe? d) é passível de tolerância que um partido, supondo-se representar uma classe “superior”, se arrogue como sua vanguarda, substituindo-a no exercício do poder, pretendendo governar em seu nome e impondo-se a toda a sociedade? Enfim, muito pano para várias mangas.
Foto: No funeral de Stalin, Krutchov ajuda ao transporte da urna. Na altura, Béria ainda caminhava uns passos mais à frente.
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