Num anterior post sobre o “enigma paradigmático” do assassinato de Sergei Kirov, caracterizámos a fase do terror estalinista (o “terror vermelho sobre os vermelhos”) como o culminar paranóico da patologia política intrínseca ao marxismo-leninismo. Em que a inércia da dinâmica da prática da violência acumulada na liquidação de classes hostis para imposição absoluta do domínio do partido único, descamba numa deriva em que a sede de sangue se vira para o interior das próprias fileiras revolucionárias. E estas purgas, recorrendo às prisões, às torturas e aos fuzilamentos, visavam: primeiro, o estabelecimento do domínio absoluto unipessoal na liderança para um único partido (em que se impunha a liquidação política e física dos eventuais concorrentes); depois, a perpetuação da obediência cega ao chefe era assegurada pela contínua pressão do medo devido à forma aleatória como a sangria continuava sem termo à vista. A justificação doutrinária desta imparável espiral de purga e sangue assentava no conceito de que, com o saltar das etapas para o socialismo e o comunismo, as contradições não só não se atenuam como germinam e desenvolvem-se. Assim, liquidados os inimigos externos (os partidos, as classes e as personalidades hostis, mais os recalcitrantes e os indecisos), o ajuste de contas tinha de continuar no interior do partido onde se supunha que se aninhavam os novos inimigos ou resistentes, numa fase do fraticídio ininterrupto.
Stalin, desfavorecido na apreciação de Lenin sobre os seus méritos relativos face aos restantes dirigentes bolcheviques, precisou primeiro de liquidar os mais brilhantes, pertinazes e capazes concorrentes à liderança sucessória de Lenin. Fê-lo, com apoio de um pequeno grupo de velhos bolcheviques seus cúmplices (com Kirov e Ordjonikidze, à cabeça) e uma camada de burocratas servis recém-promovidos ao Olimpo do Kremlin. Assim, foi afastando e liquidando Trotski, Zinoviev, Kamenev e Bukharin, todos potenciais concorrentes à liderança, arrastando consigo milhares de quadros do partido suspeitos de simpatias e de identidade programática para com os “companheiros de Lenin”. Liquidada quase toda a velha guarda bolchevique, sobraram Kirov e Ordjonikidze, mais uma catrefa de medíocres burocratas emergentes e em permanente pânico a tentarem salvar a pele (Vorochilov, Molotov, Kaganovitch, Kalinin, Mikoyan, Krutchov, Zhdanov, Beria). Nesta fase clímax do terror, os “problemas” para Stalin passaram a reduzir-se aos seus amigos e cúmplices Kirov (muito popular, com grande poder em Leninegrado) e Ordjonikidze (presidente da poderosa Comissão Central de Controle, a cúpula das purgas e das promoções) e o poder desmedido adquirido pelos chefes da polícia política (NKVD). De facto, num Estado já intrinsecamente policial (mais policial que partidário), os chefes da polícia, os carrascos mor, não só sabiam demais (sobretudo como se inventavam as conjuras fabricadas) como ainda tinham um poder discricionário sobre todos os escalões da sociedade e do partido. Encharcados em sangue de camaradas ao serviço de Stalin, os chefes policiais passavam rapidamente a elementos a afastar (que, na versão de Stalin, correspondia à liquidação física). Assim, Iagoda foi fuzilado e substituído por Iejov, Iejov foi fuzilado e substituído por Béria, Béria escapou por pouco até à morte de Stalin, sendo depois fuzilado às ordens de Krutchov). Para completar a obra, sobrava o mister de resolver os “problemas” Kirov e Ordjonikidze. Casos bicudos estes, não só pelos perfis, prestígios e influências dos estorvos, como ainda gozavam de grande proximidade com Stalin e tinham sido seus dedicados cúmplices, embora começassem a demonstrar algum nojo pela espiral paranóica em que o regime descambava. Sobre Kirov, tratado neste post, sabemos que foi “utilmente” assassinado em final de 1934. Quanto a Ordjonikidze, um íntimo amigo de Kirov, alguma “saída” se havia de encontrar. E encontrou-se em 18 de Fevereiro de 1937, data em que este duro bolchevique, também “utilmente”, se suicidou.
Grigory Ordjonikidze (conhecido como “Sergo”) (na foto) era um revolucionário georgiano que se destacou na repressão aos georgianos, em trabalho de equipa com Stalin e Dzerjinski, com uma tão enorme brutalidade que escandalizou Lenin, para lhes impor o domínio revolucionário de Moscovo e liquidar as veleidades autonomistas. Alcandorado por Stalin à cúpula do controlo de quadros do Partido (Comissão Central de Controlo), enquanto acumulava com as funções de Comissário da Indústria Pesada, colaborou com Stalin nas liquidações dos velhos camaradas bolcheviques e foi um importante inspirados do “culto da personalidade” de Stalin. A partir do assassinato do seu amigo íntimo Kirov em
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