
I – O MAESTRO CHAMA A ORQUESTRA
Já muito se escreveu, com alguma polémica à mistura (muito menos que aquilo que esperava, confesso-o), sobre os acontecimentos de 68. Houve testemunhos de quem viveu por dentro, sobretudo o Maio de 68 em Paris, as convulsões que, nesse ano, atingiram maiores dimensões em França, na Itália, na Alemanha Federal, nos Estados Unidos e na Checoslováquia. Reflectindo sobre os efeitos perduráveis na sociedade e na política, defendeu-se que nada foi depois como era antes, outros desvalorizaram os efeitos, havendo quem defendesse que, afinal, tinha sido o capitalismo quem se reforçara.
O certo é que, na altura, muita foi a gente que se espantou e assustou. Por um lado, os vigilantes da ideologia dominante da democracia capitalista, perante uma nova pirotecnia a que as regras e os costumes foram sujeitos pela fúria de mudança radical trazida por vagas de juventude radicalizada, oriunda sobretudo da massificação do acesso às universidades. Do outro lado, atónitos e imbuídos de repugnância, os bonzos da contestação organizadamente estabelecida (partidos e sindicatos), os do aparelho da alternativa com carta de nobreza herdada da Revolução de 1917, perante gente desalinhada, pulverizada em grupúsculos, indisciplinada, anarquista, praticantes da democracia directa e coisas piores. E entre os dois grandes medos dos dois pólos clássicos e instituídos do jogo da luta de classes, tem-se valorizado mais, porque estudado mais, os efeitos de 68 sobre as sociedades capitalistas, a corrosão provocada no modo de exploração dos trabalhadores, produzindo-se muita obra teórica na tentativa de actualizar a interpretação marxista dos novos fenómenos resultantes do efeito da radicalidade juvenil sobre a democracia capitalista.
Mas se 68 foi um ano de choque para a democracia capitalista, adormecida que estava na presunção de que tinha estancado o alastramento do perigo revolucionário (ou seja, confinando-o a leste) e estacionada a “guerra fria” no “parque” da coexistência pacífica, com os problemas maiores concentrados na guerra do Vietname e nas lutas armadas anticoloniais, pior ainda se encontrava o mundo comunista orientado para Moscovo. E pior ficou nesse “terrível” ano de 1968, o ano que abalou o comunismo. Por um lado, em França e em Itália, as vagas revolucionárias passaram por cima, ou contra, o controlo e a orientação dos PC’s, obrigando estes partidos a colarem-se mais aos movimentos de luta do que dirigi-los (só recuperando terreno numa segunda fase, com entrada em cena dos sindicatos finalmente abalados na sua modorra reivindicativa). E o marxismo-leninismo de cartilha que adormecia os quadros a meio da leitura, teve de pedalar intelectualmente para responder politicamente às formulações, muitas vezes provocatórias mas quase sempre inteligentes, de nova erupção do “esquerdismo” (ou do “radicalismo pequeno-burguês”, segundo outros opositores). Entretanto, pelo fogo da “revolução cultural” e com o IX Congresso do PCC, a China de Mao atingiu o pico da cisão com os soviéticos e seus aliados, espalhando por toda a parte “capelinhas concorrentes”. Na Checoslováquia, tinha sido necessário mandar os tanques substituir a política e esmagar uma direcção partidária herética por querer conciliar comunismo com liberdade. Como se tanto não bastasse, os Partidos Comunistas italiano e espanhol caboucavam o “eurocomunismo”, integrando a luta política e social dos comunistas dos seus países nos princípios da democracia pluripartidária e com base no sufrágio universal. E a disciplina da pirâmide com cimo no Kremlin abria brechas por todos os lados, com uma Jugoslávia que há muito nada obedecia, com a China e a Albânia a combaterem por todos os meios o “revisionismo soviético”, somando-se a indisciplina autonomista de Ceaucescu na Roménia, Cuba ainda perdurava em muita crítica a aspectos do mundo socialista, vários eram os partidos que ou seguiam Mao ou simplesmente recusavam a existência de um centro de comando e decisão para o movimento comunista internacional.
Formalmente, desde 1943, com a extinção do Komintern (condição cumprida pela URSS para a frente aliada contra o nazi-fascismo), o movimento comunista internacional tinha perdido o seu centro de controlo, coordenação e comando. No imediato após-guerra, e com o início da “guerra fria”, com a criação do Kominform (formalmente, apenas um centro de trocas de informações…) houve um retomar do controlo pelo PCUS que rapidamente explodiu com a cisão da Jugoslávia. Daí para a frente, a forma de Moscovo unificar, controlar e comandar as actividades dos PC’s, usando o financiamento como meio condicionante, foi a realização periódica de Conferências Internacionais de Partidos Comunistas e a edição regular de uma revista (a “Paz e Socialismo”). As primeiras duas destas Conferências tinham-se realizado em 1957 e 1960 (nesta, estiveram presentes delegações de 81 PC’s), a que acrescera, em 1967, uma Conferência dos PC’s da Europa (realizada em Karlovy Vary, Checoslováquia).
Com o descalabro e a divisão a corroerem a unidade entre os comunistas espalhados no mundo, mais a fragilização da obediência ao comando do PCUS, com dois países em disputa militar de fronteiras (URSS e China), com heresias, dissidências e cisões a alastrarem por toda a parte, foi decidido convocar uma nova Conferência Internacional de PC’s para 1969 em Moscovo e montado um comité preparatório a funcionar na Hungria. Tratava-se, antes do mais, de suster a hemorragia da disciplina, recolocando a autoridade de comando e de direcção política da URSS sobre os destacamentos comunistas. Esta Conferência que teve lugar entre 5 e 17 de Junho de 1969, contou com as presenças de 75 PC’s (alguns deles, pequenos grupos sem eco social e político nos seus países), menos seis que os presentes na anterior Conferência de 1960. No que respeita ao PCP, a delegação foi presidida por Álvaro Cunhal que, no seu discurso, produziu uma das peças mais conformes na ortodoxia para com a interpretação soviética do marxismo-leninismo, exprimindo uma fidelidade sem falhas para com os actos e orientações emanadas a partir de Moscovo. Já politicamente fora da “órbita soviética”, não compareceram os PC’s da China, da Islândia, do Cambodja, da Jugoslávia, da Albânia, da Tailândia, da Malásia, da Birmânia, da Holanda, da Nova Zelândia e do Japão. Quanto aos PC’s de Cuba e da Suécia, as suas presenças foram na qualidade de observadores, não se vinculando aos documentos em discussão. No decorrer dos trabalhos, manifestariam divergências quanto aos documentos adoptados, quanto a partes ou ao todo, os PC’s da Austrália, da Itália, de San Marino, de Reunião e da República Dominicana. Outros PC’s, assinando os documentos, fizeram discursos muito críticos para com orientações dominantes no comunismo dirigido por Moscovo.
Uma volta de leitura pelos discursos dos dirigentes comunistas de então é uma preciosa ajuda não só para entender a forma como se procurava entrar na década de 70 sob recomposta hegemonia soviética, respondendo ao desafio chinês e aos outros problemas, como a formulação do marxismo-leninismo tal como foi entendido e tentado praticar pelo comunismo internacional alinhado por Moscovo até à chegada ao poder de Gorbatchov, em 1985. Sobre isso, tentaremos debruçar-nos em próximos posts.
[A fonte de consulta aos textos das resoluções e dos discursos é a versão em castelhano (Editorial “Paz e Socialismo”, Praga, 1969) do livro “Conferencia Internacional de los Partidos Comunistas y Obreros, Moscu, 1969”]