Segunda-feira, 30 de Outubro de 2006

TARRAFAL E HISTÓRIA

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A efeméride dos 70 anos decorridos sobre a abertura do Campo de Concentração do Tarrafal (na localidade de Chão Bom, Ilha de Santiago, Cabo Verde) podia e devia servir para desmistificar os logros do branqueamento na história, mitos e outros silêncios associados na escrita e reescrita da memória. Num esforço para que o passado histórico não se associe a uma recriação da propaganda e não sobreviva como registo exclusivo de meias verdades, silêncios e heroificações trabalhadas.

 

- O Campo de Concentração do Tarrafal funcionou em três períodos: de 1936 a 1954, como campo de exílio e extermínio para presos políticos portugueses e outros europeus; entre 1961 e 1974, para militantes e combatentes dos movimentos africanos anti-coloniais; no período da descolonização de Cabo Verde, para prisioneiros considerados cúmplices do aparelho repressivo colonial, inimigos da independência e do PAIGC (no seu ramo caboverdiano e antes de se transformar em PAICV). E se a primeira fase de funcionamento do Campo é relativamente bem conhecida, testemunhada e documentada (destaco a tese de mestrado de Nélida Maria Freire Brito, historiadora angolana de origem caboverdiana, publicada em livro pelas edições Dinossauro, sob o título "Tarrafal na Memória dos Prisioneiros"), a segunda e terceira fase ainda esperam por um mínimo de trabalho historiográfico. E, no entanto, nas três fases, o Campo foi o mesmo, no mesmo local, com uma ou outra diferença de condições e tratamento, cumpriu o mesmo objectivo (confinamento e aniquilação de opositores políticos) e merece o mesmo repúdio. A distinção exclusivista da primeira fase não é um completo tributo à história e à memória e, no mínimo, padece de eurocentrismo (ao sobrevalorizar a fase do padecimento dos presos políticos portugueses antifascistas) e de filtro ideológico (ao não contemplar a reutilização de um instrumento prisional colonial ao serviço, na fase pós-colonial, de um “movimento de libertação” contra os seus opositores e inimigos).

 

- O modelo da concepção e da implantação do Campo do Tarrafal, desmentindo os pruridos dos que dizem que o salazarismo “não foi um fascismo”, foi copiado dos modelos nazis e foi, na escala portuguesa, um decalque de Dachau ou Buchenwald. Ou seja, locais de extermínio para minorias activistas recalcitrantes à aceitação da ditadura. A par da PIDE, da Legião, da Censura e da Mocidade Portuguesa, o Campo foi um sinal da tendência copista dos modelos repressivos e de enquadramento do nazi-fascismo.

 

- Embora a maioria dos prisioneiros na primeira fase do funcionamento do Campo tenham sido militantes comunistas, o universo prisional foi mais vasto, incluindo anarquistas, sindicalistas-revolucionários, republicanos democratas, espanhóis derrotados na Guerra Civil e alemães anti-nazis. E, entre os 32 prisioneiros que perderam a vida no Campo, além do então Secretário-Geral do PCP (Bento Gonçalves), inclui-se o principal líder sindicalista-revolucionário, Mário Castelhano.

 

- Como em qualquer universo prisional concentracionário, o Campo não foi só uma revelação, da parte de todos os prisioneiros, de comportamento heróico, exemplar e destemido perante uma repressão processada em condições limite para a força da resistência humana. Ao lado dos mártires impolutos, casos existiram de presos que se passaram para o lado dos carrascos ou a eles, em forma clara ou mitigada, deram mais colaboração que solidariedade aos seus companheiros. “Passagens” para o lado dos carcereiros deram-se não só na primeira fase como na segunda em que lá penaram combatentes africanos (por exemplo, a facção guineense que alinhou com a PIDE na acção de posterior infiltração no PAIGC e que culminou com o assassinato de Amílcar Cabral, foi “trabalhada” no Tarrafal). Igualmente há uma marca extremamente negativa do comportamento generalizado dos prisioneiros europeus do Campo e que muito se tenta fazer esquecer - a do seu racismo anti-africano manifestado quer para com os militares angolanos que ali fizeram serviço de guarda quer para com a população caboverdiana do meio envolvente.  

 

- Pelo isolamento, pelas condições de internamento, pelo humano desejo de sobrevivência, pela dinâmica das evoluções políticas e ideológicas, com muitas fracturas pelo meio, o Campo foi uma enorme fonte de intensidade de debate e alinhamentos e realinhamentos que marcaram o posicionamento político de muitos dos prisioneiros, nomeadamente entre os comunistas. Ali, nomeadamente, ganhou expressão considerável a facção da “política de transição” (que admitia, nela apostando, uma via pacífica de transição do fascismo para a democracia) que levou ao ostracismo violento de vários dirigentes destacados do PCP (caso de José de Sousa, que consumou ainda no campo a ruptura) e uma mancha curricular sobre outros. Por exemplo, a mitigação do culto de Bento Gonçalves pelo PCP e que ainda hoje perdura, deve-se às “manchas” que são atribuídas às posições políticas que ele adoptou no campo (e a denúncia dos seus “erros” nunca teve expressão muito evidente porque, entretanto, não sobreviveu às agruras do Campo e assim nunca representou um “perigo político” para a linha cunhalista). Mas outros dirigentes comunistas sobreviventes (Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, etc) haveriam de “pagar” mais tarde pelo ferrete dos “erros” das posições defendidas no Tarrafal. Pese embora o viciado e vicioso jogo de história-propaganda que o Tarrafal continua a alimentar na memória permitida e autorizada do PCP (leiam-se as observações de Pacheco Pereira ao livro recentemente lançado pelas Edições Avante), em que a “história oficial” é a que retrata aquele partido como uma organização monolítica e sem falhas nem contradições, seguindo sempre, como uma procissão militante, o itinerário político-partidário de Cunhal. Razão bastante para o PCP continuar a querer que os historiadores andem bem longe dos seus arquivos.

Publicado por João Tunes às 15:58
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11 comentários:
De João Tunes a 30 de Abril de 2014
Caro Pedro Cruz,
Não me ofendeu coisa nenhuma. E a referência a historiadores revisionistas e branqueadores não era para si (se quer nomes, dou-lhe dois: Costa Pinto e Rui Ramos). O que acho é que vc se identifica com o pacote ideológico da minização do salazarismo recorrendo à retórica da exploração das diferenças de dimensão e de escala sem ter em conta que a importância relativa dos países e a dimensão do inimigo a exterminar não tinham comparação alguma. Salazar usou a máxima repressão que lhe foi necessária, tanto que morreu com o seu regime a mandar. Copiou do fascismo e do nazismo o qb, assassinou e torturou o qb. Mas cumpriu as finalidades do fascismo em todas as suas vertentes, procurando sempre o qb. O que, em muitos casos e ocasiões levaram ao assassinato, por vezes em massa (na guerra colonial, por exemplo), à tortura, à censura, à vigilância permanente, à criação de milícias de adultos e de jovens, à filiação numa religião oficial porque oficiosa. Salazar adoptou e adaptou um modelo e esse modelo foi o modelo fascista. Como Franco o fez em Espanha, Horthy na Hungria, Antonescu na Roménia, e vários outros. Aliás, o nazismo inspirou-se no fascismo italiano (seu predecessor) mas instalou muitíssimas diferenças e, no entanto, a refer~encia ao nazi-fascismo, como um bloco de semelhanças com a mesma identidade não chocam ninguém.
De Pedro Cruz a 30 de Abril de 2014
Meu Caro,
Agradeço o S/ comentário.
Devo dizer que já cresci em liberdade e que para mim qualquer totalitarismo é intolerável. E lembro-me da minha mãe ensinar-me o lugar comum, verdadeiro, segundo o qual «os extremos tocam-se».
Acerca do fascismo enquanto adjectivo, percebi que estamos de acordo quanto à reprovação moral do Salazarismo, que não pretendi rever (e lamento se dei a entender essa ideia). Na questão conceptual - o Fascismo enquanto substantivo - é que, do pouco que sei, o regime italiano, inspirado entre outros nas ideias e na estética do Futurismo, foi essencialmente progressista, quis criar um «homem novo», numa sociedade nova. O Nazismo também. Tal como o Comunismo. O Salazarismo (tal como o Franquismo, creio), pelo contrário, foi um regime profundamente conservador, retrógrado. Tão conservador que parou no tempo, quando o mundo mudava aceleradamente, até a Igreja.
As práticas eram idênticas, com simples diferenças de grau? Sim, mas parece-me que são sempre idênticas em todos os regimes totalitários (de esquerda e de direita porque, lá está, os extremos tocam-se), onde a dignidade do ser humano não é respeitada. A começar pela sua liberdade.
Portanto meu Caro, sem prejuízo de ler ainda mais qualquer coisa, não é o facto de porventura divergirmos na classificação conceptual destes regimes que me afasta de si no plano da avaliação moral (negativíssima) dos mesmos. Mal comparado, se eu afirmar que o tipo legal de crime de ameaça é diferente do de coacção, não estou a dizer que um é crime e que o outro não é. Ambos são crimes, embora correspondendo a tipos diferentes. Enfim, creio que na magna Questão dos Universais, o meu amigo tende a sentar-se na bancada dos discípulos de Guilherme de Ockham. Eu não tanto, ainda não tomei partido, mas não me inclino para o Nominalismo, que de resto sustenta a maior parte do pensamento moderno.
Cordialmente
Pedro Cruz

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