A efeméride dos 70 anos decorridos sobre a abertura do Campo de Concentração do Tarrafal (na localidade de Chão Bom, Ilha de Santiago, Cabo Verde) podia e devia servir para desmistificar os logros do branqueamento na história, mitos e outros silêncios associados na escrita e reescrita da memória. Num esforço para que o passado histórico não se associe a uma recriação da propaganda e não sobreviva como registo exclusivo de meias verdades, silêncios e heroificações trabalhadas.
- O Campo de Concentração do Tarrafal funcionou em três períodos: de 1936 a 1954, como campo de exílio e extermínio para presos políticos portugueses e outros europeus; entre 1961 e 1974, para militantes e combatentes dos movimentos africanos anti-coloniais; no período da descolonização de Cabo Verde, para prisioneiros considerados cúmplices do aparelho repressivo colonial, inimigos da independência e do PAIGC (no seu ramo caboverdiano e antes de se transformar em PAICV). E se a primeira fase de funcionamento do Campo é relativamente bem conhecida, testemunhada e documentada (destaco a tese de mestrado de Nélida Maria Freire Brito, historiadora angolana de origem caboverdiana, publicada em livro pelas edições Dinossauro, sob o título "Tarrafal na Memória dos Prisioneiros"), a segunda e terceira fase ainda esperam por um mínimo de trabalho historiográfico. E, no entanto, nas três fases, o Campo foi o mesmo, no mesmo local, com uma ou outra diferença de condições e tratamento, cumpriu o mesmo objectivo (confinamento e aniquilação de opositores políticos) e merece o mesmo repúdio. A distinção exclusivista da primeira fase não é um completo tributo à história e à memória e, no mínimo, padece de eurocentrismo (ao sobrevalorizar a fase do padecimento dos presos políticos portugueses antifascistas) e de filtro ideológico (ao não contemplar a reutilização de um instrumento prisional colonial ao serviço, na fase pós-colonial, de um “movimento de libertação” contra os seus opositores e inimigos).
- O modelo da concepção e da implantação do Campo do Tarrafal, desmentindo os pruridos dos que dizem que o salazarismo “não foi um fascismo”, foi copiado dos modelos nazis e foi, na escala portuguesa, um decalque de Dachau ou Buchenwald. Ou seja, locais de extermínio para minorias activistas recalcitrantes à aceitação da ditadura. A par da PIDE, da Legião, da Censura e da Mocidade Portuguesa, o Campo foi um sinal da tendência copista dos modelos repressivos e de enquadramento do nazi-fascismo.
- Embora a maioria dos prisioneiros na primeira fase do funcionamento do Campo tenham sido militantes comunistas, o universo prisional foi mais vasto, incluindo anarquistas, sindicalistas-revolucionários, republicanos democratas, espanhóis derrotados na Guerra Civil e alemães anti-nazis. E, entre os 32 prisioneiros que perderam a vida no Campo, além do então Secretário-Geral do PCP (Bento Gonçalves), inclui-se o principal líder sindicalista-revolucionário, Mário Castelhano.
- Como em qualquer universo prisional concentracionário, o Campo não foi só uma revelação, da parte de todos os prisioneiros, de comportamento heróico, exemplar e destemido perante uma repressão processada em condições limite para a força da resistência humana. Ao lado dos mártires impolutos, casos existiram de presos que se passaram para o lado dos carrascos ou a eles, em forma clara ou mitigada, deram mais colaboração que solidariedade aos seus companheiros. “Passagens” para o lado dos carcereiros deram-se não só na primeira fase como na segunda em que lá penaram combatentes africanos (por exemplo, a facção guineense que alinhou com a PIDE na acção de posterior infiltração no PAIGC e que culminou com o assassinato de Amílcar Cabral, foi “trabalhada” no Tarrafal). Igualmente há uma marca extremamente negativa do comportamento generalizado dos prisioneiros europeus do Campo e que muito se tenta fazer esquecer - a do seu racismo anti-africano manifestado quer para com os militares angolanos que ali fizeram serviço de guarda quer para com a população caboverdiana do meio envolvente.
- Pelo isolamento, pelas condições de internamento, pelo humano desejo de sobrevivência, pela dinâmica das evoluções políticas e ideológicas, com muitas fracturas pelo meio, o Campo foi uma enorme fonte de intensidade de debate e alinhamentos e realinhamentos que marcaram o posicionamento político de muitos dos prisioneiros, nomeadamente entre os comunistas. Ali, nomeadamente, ganhou expressão considerável a facção da “política de transição” (que admitia, nela apostando, uma via pacífica de transição do fascismo para a democracia) que levou ao ostracismo violento de vários dirigentes destacados do PCP (caso de José de Sousa, que consumou ainda no campo a ruptura) e uma mancha curricular sobre outros. Por exemplo, a mitigação do culto de Bento Gonçalves pelo PCP e que ainda hoje perdura, deve-se às “manchas” que são atribuídas às posições políticas que ele adoptou no campo (e a denúncia dos seus “erros” nunca teve expressão muito evidente porque, entretanto, não sobreviveu às agruras do Campo e assim nunca representou um “perigo político” para a linha cunhalista). Mas outros dirigentes comunistas sobreviventes (Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, etc) haveriam de “pagar” mais tarde pelo ferrete dos “erros” das posições defendidas no Tarrafal. Pese embora o viciado e vicioso jogo de história-propaganda que o Tarrafal continua a alimentar na memória permitida e autorizada do PCP (leiam-se as observações de Pacheco Pereira ao livro recentemente lançado pelas Edições Avante), em que a “história oficial” é a que retrata aquele partido como uma organização monolítica e sem falhas nem contradições, seguindo sempre, como uma procissão militante, o itinerário político-partidário de Cunhal. Razão bastante para o PCP continuar a querer que os historiadores andem bem longe dos seus arquivos.
Exmo. Senhor João Tunes, Acabado de visitar o campo de Chão Bom, procurando mais informações, deparei-me com este S/ artigo/reflexão que me pareceu muito interessante (embora já tenha percebido que escreve essencialmente para si próprio, ainda assim deixo-lhe o meu elogio, agradecendo que o não tenha feito num diário ou num escrito esquecido numa gaveta). Confesso que a visita me deixou algumas perplexidades e por isso procuro mais informação. Cresci a ler e a ouvir os discursos acerca do Campo de Concentração do Tarrafal e o que vi de certo modo surpreendeu-me. Vi a «Holandinha», vi uma foto da «Frigideira» e imagino o que tenha sido sofrer os horrores desses castigos. Imagino as duras condições de vida, pelo clima, pelo afastamento dos familiares e do mundo, pela falta de assistência médica e medicamentosa e pelo papel do seu tristemente célebre médico, pela rudeza e boçalidade dos guardas, tudo condições bem documentadas. Mas, conhecendo (outras) penitenciárias, confesso que não encontrei ali sinais objectivos de uma planificação ordenada para o «extermínio» e por isso muito lhe agradeceria se pudesse sustentar a sua afirmação de que «o modelo da concepção e da implantação do Campo do Tarrafal, (...), foi copiado dos modelos nazis e foi, na escala portuguesa, um decalque de Dachau ou Buchenwald.» As autoridades portuguesas conheciam esses modelos? E procuraram segui-los? Pretenderiam, de facto, que o campo de Chão Bom fosse um campo de extermínio? Nesse caso, considerando o número de mortos e as libertações, não teria sido um rotundo falhanço sob o ponto de vista do poder ditatorial? Eu estava convencido de que as autoridades portuguesas não conheceriam a organização e tipo de funcionamento de tais campos nazis. Nem os dos campos de trabalho soviéticos (e no Campo de Chão Bom os prisioneiros trabalhavam). Na sua opinião o que é que existe no campo de Chão Bom que o aproxima desses modelos e o afasta do modelo construtivo e de funcionamento de uma penitenciária, digamos, comum e da mesma altura? (já para não falar da hodierna prisão de Joe Arpaio, no Arizona...) E o que dizer da na altura inconclusiva visita da Cruz Vermelha ao campo? Os ainda bem conservados espaços e as conclusões dessa visita podem indiciar que as razões para a nossa crítica moral ao que foi o campo estejam menos na sua concepção e planificação e muito mais na prática quotidiana das pessoas que o dirigiam, desde o tal médico até aos guardas que lidavam com os prisioneiros, sem esquecer as responsabilidades do director. E, principalmente, pelo facto de ter sido uma prisão política, onde se encontravam pessoas presas por «delito de opinião». Este sim, o aspecto mais grave, mas que não confere ao Tarrafal um factor especialmente distintivo em relação a outras prisões noutros locais do então «império», a começar pela de Peniche e acabando nas de Angola e de Moçambique. Enfim, provocada a interrogação, ainda não tenho uma visão completa e estou à procura de respostas. A S/ opinião - que me parece objectiva - interessa-me. Desde já grato se me(no)-la quiser dar. Quanto à S/ observação - que vem a ser o ponto central do S/ artigo -, parece-me justa, mas temos que considerar que o n/ imaginário foi construído pela natural reacção de uma organização política extremamente organizada e eficaz, experiente no domínio das técnicas de propaganda. Tendo o PCP «sofrido directamente» (na pessoa dos seu militantes) as consequências do 1º campo, é natural que tenha concitado muito maior reflexão para esse período. Por outro lado, esse será o período em que as condições foram de facto mais duras (tendas no início, a mencionada «frigideira», etc.) O segundo campo, que já não foi vivido «na pele» pelos militantes do PCP, ainda assim tem sido objecto de algum tratamento, bem retratado no museu no próprio local, o que se justifica, na medida em que se tratava da luta anti-colonial e de militantes da mesma. Acerca do 3º período, tratando-se, afinal, de uma prática de um partido «irmão» já no período da independência, é natural que os mesmos «propagandistas» não se sintam confortáveis para falar do assunto. E que o mesmo acabe esquecido, apesar de estar muito mais próximo de nós no tempo. Mas ao fim de 40 anos, talvez seja altura para um olhar mais distanciado e objectivo
Caro Pedro Cruz, São bem sabidas as influências sobre tipo e natureza do aparelho repressivo do fascismo português [sobretudo na sua fase mais dura - desde a guerra civil de Espanha (1936) até à reviravolta de Estalinegrado na II GM (1943)] por parte dos "fascismos irmãos" de Itália e Alemanha. E estão provadas as formas como a PVDE/PIDE foi inspirada e treinada pela Gestapo e pela sua irmã italiana (utilização de manuais, treinos, estágios e vinda de conselheiros). O Tarrafal, no seu arranque e fase inicial, teve como modelo Buchenwald, que arrancou praticamente em simultaneo com o Tarrafal, o qual, na sua primeira fase se destinou exclusivamente ao aniquilamento dos alemães antifascistas (comunistas, socialistas, católicos democratas) e não integrava, porque ainda não tinha arrancado, o seu serviço no holocausto. Quanto às diferenças Tarrafal versus Buchenwald elas foram da mesma ordem que as diferenças entre a Gestapo e a PVDE, entre a Legião Portuguesa e as SA, entre a Mocidade Portuguesa e a Juventude Hitleriana, entre António Ferro e Goebbels, entre Duarte Pacheco e o hierarca nazi coordenador das obras públicas do tempo de Hitler, entre a cerimónia da inauguração do Estádio do Jamor e a abertura dos Jogos Olímpicos de Berlim, entre o cineasta António Lopes Ribeiro e a líder do cinema nazi, etc, etc. Ou seja, as diferenças (não no estilo e nas intenções mas sim na escala e na intensidade) são, essencialmente, e a meu ver, as que relevam entre a dimensão parola, pobretana e campónia-clerical do fascismo salazarista e os fascismos de grandes e médias potências cujos cumes eram as versões alemã e italiana.