O valor da vida se resumido ao existir, é pouco mais que nada. Em muitos casos, menos que nada. Ou quando muito, um mero determinismo de uma fatalidade biológica em que o futuro e a sua qualidade dependem do que for. No caso do nascimento de uma nova pessoa, há quem o pretenda ainda menos que tudo isso de muito pouco – uma obrigação que resulta de um acto sexual sem os constrangimentos que evitem a procriação.
Uma gravidez não desejada ou imediatamente arrependida é sempre um drama humano. E um drama que a biologia impõe que a sua intensidade seja vivida numa desproporção gritante, porque muitíssimo mais por um dos dois parceiros construtores do resultado. Pois é sempre sobre a mulher-mãe que recai o ónus maior desse drama. E como se essa componente inelutável fosse pequena, é a ela que a sociedade pedirá contas da decisão sobre o que irá fazer sobre uma gestação que foi obra de um par. Deixando na paz serena ou perturbada o co-autor. Acrescendo a parte adicionalmente perversa de, no caso, a mulher responder perante sociedades maioritariamente gerida por homens, perante leis feitas maioritariamente por homens, perante usos, costumes, valores e tradições maioritariamente formatados por homens, perante religiões celebradas e dirigidas maioritariamente por homens, perante uma opinião pública maioritariamente formada por um somatório de opiniões masculinas.
A penalização de um aborto é um castigo aplicado pela sociedade predominantemente masculina (com a cumplicidade de várias acólitas femininas) sobre duas pessoas – uma mulher e uma criança não desejada. Em nome de a mulher não ter direito a evitar uma fatalidade. À criança porque lhe é imposta a obrigação de existir que sobreleva sobre o direito à vida entendida com a qualidade mínima de ser saudada e cuidada como um novo ser desejado. Só uma sociedade paranoicamente procriadora, pessimista, castigadora, rancorosa perante a felicidade humana, consegue ser coerentemente penalizadora perante a mulher que resolve o drama da gravidez não desejada ou arrependida pelo drama do aborto. E essa crueldade, traduzida em leis de castigo, só podia ter, como tem, a cumplicidade ideológica de uma religião que fosse, como é ela mesma, dirigida por uma seita misógina que secundariza a mulher, a vê como “fonte da tentação e do pecado”, lhe interdita a ascensão ao sacerdócio ou a construção de um lar com um dos sacerdotes ordenados. Uma mesmíssima religião que, sadicamente, paralelamente faz tudo por interditar as práticas da contracepção e uma vida sexual esclarecida. No fundo, uma sociedade e uma religião contra a vida, contra as vidas.
Obviamente que resta ainda e também, para que o quadro seja completo, o naipe da irresponsabilidade, o das “liberalizadoras” da barriga à mostra com a inscrição estupidamente hedonista do “aqui mando eu”. Mas circunscrever, confundindo, o drama feminino da gravidez não desejada ou arrependida com o leque ínfimo das meninas infantilizadas folclóricas do género "bloquista", é ir-se remexer na gaveta retórica da demagogia. Como se um qualquer abuso da liberdade justificasse o fim do direito à liberdade. Por exemplo, um qualquer vómito traduzido num escrito justificasse o regresso da censura. Mas mesmo essas irresponsáveis disfarçadas de “liberais”, é bom que, em caso de engravidarem, possam abortar. Porque, assim e em cada caso, seriam duas poupanças úteis à vida – menos uma mãe irresponsável e menos uma criança destinada a ser não amada.
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