Uma coincidência será uma das formas fáceis de provocar uma tentativa de raciocínio político. Sobretudo nesta era de incertezas em que todas as âncoras ideológicas se mostram mancas por caruncho. Quando regressado de mais uma minha estadia em Cabo Verde, rebentou o escândalo controlado de um cantor mediático apontar o dedo à cleptocracia angolana, porventura com exagero medido no libelo provocatório. Daí a pensar na herança do pós-império português, encadeando comparações (pecado venial a caminho de mortal) é um passo de tentação. Irresistível, porque os pólos da bateria ficaram a acenar convite de sedução à energia de neurónios politizados.
Angola era a “jóia do império”, a mais difícil de largar, aquela que seria a última a guardar, juntando-se, em contraponto, o anticolonialismo mais débil e dividido. Ao petróleo e diamantes, somou-se uma independência mais geopolítica que nacional e tão volúvel e venal que não pestanejou na hora de mudar de amores a Brejnev e Fidel pelos bons amanhos com o Tio Sam. Hoje, Angola é o que é, não “nossa”, mas longe, muito longe, de ser dos angolanos. E é um dos expoentes mais detestáveis da parte rica de África, como a querer demonstrar que, depois de Mobutu, o pior ainda podia estar para chegar.
Cabo Verde era a colónia portuguesa mais longe de querer ser independente, a não ser no pensamento do lunático genial que foi Amílcar Cabral. A maioria dos caboverdianos pensava Cabo Verde, entregue à sua dimensão brutal de carências, como uma peça que, se solta, seria inviável. Sonhavam, quando muito, nos intervalos da morte pela seca, que mereciam, em salvação, um Alberto João mestiço a cantar mornas e a dançar coladeras e funáná, enquanto sacavam uma ajudas de migalhas gordinhas caídas da mesa do orçamento dos tugas que, durante séculos, refinando eroticamente o uso das ilhas como entreposto negreiro, tinham ganho gosto por camas de pretas e de cabritas. Hoje, Cabo Verde é a referência mais positiva em África, o melhor que, politicamente, África produziu. Tem uma democracia estável, com liberdade de expressão e alternância dependente somente do voto, saltou por cima da míngua e da fome, com um início incipiente de vida universitária local, tenta gerir o problema gordo do desemprego nos licenciados, tantos são eles. Honra os seus compromissos e é considerado internacionalmente como o ajudado mais exemplar pela forma escrupulosa como aplica e presta contas dos auxílios que recebe.
O colonialismo tardio que resultou da teimosia a-histórica de Salazar deu no que tinha que dar. Bem à imagem da sociedade anacrónica que plantou na metrópole em que tentou opor o atavismo à modernidade, numa segmentação anacrónica entre camadas sociais gostando de ser caricaturas. E que perdura na herança pós-colonial: desde o pobrezinho honrado e aplicado nos estudos até ao bando de senhorios ricaços e absentistas a gozarem herança rica de padrinho que desertou para parte incerta.
É tão fácil raciocinar na base de uma coincidência, não é? É. Peço desculpa.
Nota: Este post esteve “congelado” em espera de publicação (por uma peripécia editorial na blogosfera). Naturalmente que se ressente de alguma passagem de tempo sobre a altura em que foi escrito. Mesmo assim, que mais não seja por teimosia, aqui fica editado. É que, como dizia o outro, “ninguém cala a voz da classe operária”.