Domingo, 30 de Março de 2008

QUANDO UMA CORONHA NASCEU NUM UMBIGO

 

Na produção regular de literatura sobre a guerra colonial, finalmente a adquirir uma dimensão propícia a colocar a memória do passado português de média distância nos carris, vai surgindo uma variedade de experiências narradas ou romanceadas que evidencia como essa participação de centenas de milhar de portugueses nessa gesta colectiva dramática, traumática para muitos, foi vivida de forma muito diferenciada. E se a produção de literatura (memorialista ou por via da ficção) sobre a guerra continuar, como se prevê, até pelo papel de catarse que apresenta, haverá condições, em breve, para se proceder a uma tipificação das atitudes e comportamentos dos mobilizados para combaterem os movimentos independentistas africanos. Na segmentação de comportamentos que determinaram as vivências (e hoje as memórias reflectidas sobrevivas à guerra), distinções caracterizadoras se apresentarão entre militares de carreira e milicianos, entre as camadas militares (praças, sargentos e oficiais), os locais de combate com forte, fraca ou nula provas de fogo, a partilha ou não de baixas entre camaradas próximos, finalmente, as diversas épocas que vão desde a mobilização com o élan patriótico temperado com o sal da repugnância no início dos combates em Angola em 1961 até ao dobre de finados na Guiné em 1973, com ramificações de percepção da realidade da guerra consoante os teatros de operações.

 

Esta diversidade de experiências, numa enorme variedade quanto a tempo, espaço, responsabilidade e impacto dos combates, a que acresce o fundo ideológico que marcava o posicionamento perante a guerra por parte de cada militar, faz enorme diferença quanto ao testemunho e ao registo depositado para memória futura. Recentemente, assistimos à forma, quase folclórica, como Cavaco Silva realizou publicamente, na sua última visita presidencial a Moçambique, uma síntese institucional da sua passada experiência como oficial miliciano do exército colonial “aquartelado” numa secretaria da burocracia militar em Lourenço Marques e tentando explorar essa vivência africana como uma amarra de amor a África do tipo do sortilégio e publicitando essa emoção, perante os moçambicanos, como ponte afectiva que possa beneficiar a relação entre os Estados de Portugal e Moçambique (juntando-lhe o doce da partilha do feitiço africano com a memória revivida de Maria Cavaco Silva que, no tempo de comissão militar do marido, o acompanhou e realizou experiência de professora no Liceu Salazar de Lourenço Marques). Ambos exprimindo-se com sinceridades evidentes, expondo até o primarismo cultural partilhado dos seus olhares romântico-passadistas sobre África, o casal Cavaco Silva pensou que assim servia as suas funções institucionais, servindo a relação entre os povos e Estados de Portugal e Moçambique, e nisso nada há a reparar. Mas imaginemos que Cavaco Silva, em vez de oficial da rotina administrativa militar de inserção laurentina, tinha sido um dos militares comandos que "visitaram" Wiryamu. Então, ou se calava sobre a sua participação colonial ou tinha de enfrentar o problema das culpas coloniais. Em qualquer dos casos, a margem de folclore do feitiço africano tinha de ser deixado para outros da comitiva.

 

Mário Beja Santos, um conhecido teórico dos direitos do consumidor, lançou um livro de luxo (se atendermos ao tipo da publicação e ao seu preço) (*) sobre a sua experiência como alferes miliciano na guerra da Guiné. É um livro de si para si, numa partilha em que a leitura de uma falha narcísica é proposta ao leitor, onde este antigo combatente recupera as suas memórias de guerra como registo de uma experiência em que a guerra passou por ele, mais que ter sido ele a passar por uma guerra. Apesar da distância no tempo para reflexão, apesar ainda de o seu lastro cultural e ideológico antes adquirido o ter levado á guerra com uma experiência de militância católica de esquerda, com um perfil de nojo pelo fascismo e pelo colonialismo, Beja Santos assume, porque mantêm (e com pleno direito a isso), uma passagem pela guerra em que o zelo do cumprimento da missão, o assumir do seu estatuto de oficial, a centralidade da sua personagem, foram as marcas da sua passagem pelo teatro militar da Guiné. E, mais que a paisagem do contexto da guerra e a reflexão sobre os seus absurdos, como que a guerra, vista pelo livro, se tenha vitrificado para emoldurar o profissional zeloso, transportando seus livros e sua ética, fazendo a guerra como se a coronha da espingarda lhe nascesse do umbigo. E se o estilo literário é depurado e a arrumação limpa é, o saldo final é de um bocejante enfado pelo desperdício de alguém, que não sendo ele, sendo apenas um consumidor com os seus direitos, ler-lhe o livro.

 

Um mérito tem o livro de Beja Santos, o de ajudar a tipificar uma das passagens milicianas pela guerra colonial. Outras, muitas outras, existiram. E felizmente que assim foi. Da análise do leque, sairá, um dia, um melhor conhecimento do estar português na guerra colonial.     

 

(*)“Diário da Guiné (1968-1969) – Na Terra dos Soncó”, Mário Beja Santos, Edição conjunta Círculo de Leitores e Temas & Debates

Publicado por João Tunes às 00:43
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