Segunda-feira, 24 de Março de 2008

O HOMEM VESTIDO DE "CHABORA"

 

O que sugere as imagens deste senhor entrado na idade e fazendo figura de turista europeu em aparente disfarce de fingimento lúdico-folclórico, errando por terras exóticas? Talvez a resposta frequente seja de que se tratará de um maduro tonto com idade para ter juízo e, por falta dele, se travestiu de uma qualquer coisa que ele não é. Mas a resposta certa é que o senhor, orgulhoso da sua novíssima “chabadora”, que lhe foi oferecida como homenagem pelo régulo do Mejo (Guiné-Bissau), em sinal de gratidão e de homenagem da população local, não só não é um turista como se trata de um Coronel das Forças Armadas Portuguesas, Coutinho e Lima de nome pelo qual é conhecido. E uma homenagem justa não se recusa, ou tal não se deve.

 

O Coronel de Artilharia Coutinho e Lima, já com uma excelente folha de serviços a acompanhá-lo (escolhido por isso mesmo), foi colocado, no ocaso da guerra colonial, a comandar o reduto sul do dispositivo militar na Guiné-Bissau na desesperada resistência ao assalto final do PAIGC que visava varrer a presença colonial portuguesa naquele chão africano. Spínola esperava dele, cumprindo a lógica cumpridora de ordens vinda da cegueira ensarilhada de Marcello Caetano, que, se necessário, morresse no seu posto e, como ele, deixasse que os corpos de quem comandava, mais a população que protegiam, se desfizessem em mistura heróica e patriótica com pólvora e estilhaços. Sitiado no quartel em Guidedje, sujeito a um vendaval interminável de fogo e metralha, sem meios para ripostar nem aguentar além do martírio inglório (meios que pediu e não lhe foram cedidos), o Coronel Coutinho e Lima pendeu mais para a memória da lucidez do General Vassalo e Silva (o general maldito de Salazar por se recusar a cumprir a ordem do ditador de resistir suicidariamente à indefensável invasão indiana de Goa) que para o sacrifício colectivo inútil que Caetano e Spínola lhe ordenavam. Organizou a tropa e a população e, explorando o efeito surpresa, depois de destruir o que no quartel servisse como útil para a guerrilha, organizou uma coluna que abandonou Guiledje e se abrigou no quartel mais próximo (Gadamael), conseguindo-o sem ter baixas. Em termos militares, exceptuando o simbolismo do abandono de uma fortificação, tratou-se apenas de uma clássica retirada táctica perante uma correlação de forças desfavorável. Mas a guerra colonial na Guiné, onde na sua história abundavam os casos de abandono de posições militares consideradas indefensáveis, tinha entrado na fase do estertor português e a simbologia do abandono de Guiledje, como assim se comprovou ser, só tinha uma leitura, a de que a guerra na Guiné estava efectivamente perdida pelo lado português. Nesse clímax do estertor da presença colonial, o Coronel Coutinho e Lima, que noutras circunstâncias seria louvado pela sabedoria militar de bem retirar perante uma posição indefensável (e teria as estrelas do generalato a dourarem-lhe a decoração dos ombros), pagou o preço de ser chamado de cobarde, foi destituído das funções, cumpriu prisão e foi sujeito a um processo disciplinar que o 25 de Abril gorou quanto a maiores consequências.

 

Vivendo largas décadas a curtir a solidão que lhe foi proporcionada pelos que só atendem aos heróis (mesmo que loucos), valendo-lhe uma consciência tranquila de apenas ter evitado centenas de mortos inúteis, mas engolindo em seco o amargo do labéu de oficial derrotado pela cobardia, o Coronel Coutinho e Lima voltou agora a Guiledje, reencontrou-se com quem no PAIGC o derrotou (além de Spínola), e disse, com honra e clareza de militar, das suas razões nas circunstâncias que viveu. Trouxe agora da Guiné uma “chabora” que o reconhece pela gratidão de gentes que tiveram vidas sobrevivas por ter tido a coragem da lucidez de, em 1973, ter evitado muitas mortes inúteis. Se a lucidez histórica compensasse injustiças passadas, diria que a “chadora” lhe assenta melhor que as estrelas de general que Marcello e Spínola não lhe sentaram nos ombros, trocando-as pelo opróbrio da chancela carimbada nos cobardes. Como assim não é, há perante este militar uma dolorosa injustiça a reparar. Do Estado e dos cidadãos, incluindo aqueles para quem a guerra colonial nunca existiu.

 

(Aqui, de onde também foram copiadas as fotos, pode ler-se o texto da comunicação do Coronel Coutinho e Lima ao Simpósio Internacional de Guiledje, recentemente realizado na Guiné Bissau, onde este militar de carreira na reserva descreve detalhadamente as circunstâncias que enfrentou e o modo como as resolveu)

Publicado por João Tunes às 16:02
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2 comentários:
De paulo santiago a 24 de Março de 2008
Eu,estava lá em 1/03/2008.
Vi a emoção do Coronel Coutinho e Lima,quando o
Régulo de Medjo lhe vestiu a"chadora"em agradecimento por ter salvo da morte 800 civis sitiados no quartel de Guiledje.
Foi bonito e foi emocionante.
Também lá estava o Comandante Pedro Lauret,em
1973,imediato do NRP Orion,que contrariando as ordens do Com-Chefe,andou a recolher militares e
civis,abrigados nas margens do rios,junto a Gadamael
Porto nesses dias de fins de Maio/73
Honra,a quem não cumpriu ordens.Se as cumprissem
teriam acontecido mais umas centenas,repito,
centenas, de mortes.
Abraço
De João Tunes a 24 de Março de 2008
É isso mesmo, meu caro Paulo Santiago, nós sabemos que a suprema honra de um militar (e nós de milicianos não passámos nem disso quisemos passar), ou simplesmente de homem, perante o absurdo de uma ordem estúpida ou criminosa, é não lhe obedecer. E deixa que te diga: foi bonita a vossa festa, pá! Grande abraço.

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