Rui Bebiano retomou a edição da sua série de textos sobre a “Revolução de Outubro”, com um oitavo post em que aborda a mimetização do golpe russo-bolchevique no processo de expansão do poder comunista (e que, tendencialmente, almejava o domínio universal) e explica como as réplicas em diversos locais geográficos (na Europa, na Ásia e na América Latina) seguiram espécies de modos distintos, absorvendo características regionais (quer do ponto de vista social quer das tradições culturais) com variantes mais ou menos heréticas nas formas de tomada de poder e respectiva legitimação (como sejam: a incorporação primordial do campesinato nas revoluções asiáticas e o guerrilheirismo provincial no caso sul-americano).
Toda a sistematização sintética comporta o inevitável risco da modulação unicista dos fenómenos. E se todo o post vale pela clareza exemplar e rigorosa, tendo em conta o esforço (e o risco) de tamanha síntese, a corrosão da generalização afecta sobretudo, julgo eu, a referência à expansão do comunismo na Europa de Leste sob abrigo das conquistas do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. Escreve Rui Bebiano:
Já o estabelecimento das «democracias populares» no leste europeu, ocorrido trinta anos mais tarde, assumiria características diferentes [do “exemplo russo”], variáveis aliás de país para país mas coincidindo na forma não-insurreccional - embora marcada pelas pesadas sequelas da guerra e por um combate político extremado - de tomada ao poder. Por esse motivo, o exemplo de Outubro penetrou ali mais pela via da exaltação simbólica da figura mitificada de Lenine e da aplicação de um «leninismo prático», particularmente útil sob as condições de rápida instauração de regimes de partido único, e ainda pelo reconhecimento, principalmente a partir da criação em 1947 do Cominform, do papel dirigente da União Soviética e do carácter incontornável do seu modelo rigidamente centralista de governo e de organização da sociedade.
Se o magma de reprodução das formas de instauração do comunismo apresentado é válido para países como a Hungria, a Roménia e a Bulgária (antigos aliados do Eixo e com partidos comunistas grupusculares), a que se poderiam adicionar os países bálticos (já anteriormente sovietizados e re-incorporados na URSS), a Polónia e a RDA (mais tarde), ou seja, imposição de ditaduras comunistas sustentadas exclusivamente em conquistas militares soviéticas, os casos da Checoslováquia e da Jugoslávia/Albânia, surgem com diferenças substanciais, do conjunto e entre si. No caso checoslovaco, havendo embora a protecção da presença do exército soviético, o partido comunista era forte (na Boémia e na Morávia, não na Eslováquia) e foi capaz de obter uma vitória eleitoral após a libertação do nazismo. Com o nacionalismo reaccionário eslovaco na mó de baixo pelo seu anterior colaboracionismo com o Reich, o comunismo checo tinha não só um amplo apoio de massas como a capacidade de ser praça-forte na coligação saída das primeiras eleições no após-guerra. Mas a passagem da hegemonia comunista ao estado de partido único foi conseguida em 1948 (no golpe de Fevereiro) com uma reprodução tardia do Outubro russo-bolchevique que conjugou a intriga contra os “ministros burgueses” com as movimentações de massas e milícias operárias. E, neste sentido, a encenação da tomada de poder em Praga foi uma espécie de “remake” do Outubro russo. Como específica foi a tomada de poder na Jugoslávia (idem, muito por arrastamento, na pequena Albânia). Aqui tratou-se de uma saga própria da acção guerrilheira chefiada por Tito que praticamente dispensou a ajuda soviética para libertar a Jugoslávia dos nazis e depois tomar o poder em Belgrado, tendo sido muito mais substancial e decisiva a ajuda prestada por britânicos e norte-americanos no fornecimento de armas aos guerrilheiros. Esta “autonomia jugoslava” na via da conquista do poder, com capacidade insurreccional própria, colocou a conquista do poder pelos comunistas jugoslavos mais perto dos posteriores modelos “asiático”/”sul americano” que do “modelo russo” ou das outras transferências de poder na Europa de Leste. Aliás, além da crise do Cominform que se seguiu imediatamente à sua criação (por causa do “cisma jugoslavo”), são exactamente na Jugoslávia, na Checoslováquia e na Albânia, ditaduras comunistas com partidos comunistas fortes, que se irão registar cisões e conflitos graves entre os “comunistas nacionais” e os seus camaradas e orientadores soviéticos, mas em que a ideia comunista não era posta em causa, enquanto as crises graves noutros países comunistas com partidos comunistas relativamente fracos – Polónia, RDA e Hungria -, se vão dever a sentimentos anticomunistas enraizados e generalizados e em que a antinomia motivadora das rebeliões era comunismo/democracia. Esta diversidade e complexidade da história do comunismo na Europa de Leste fá-la resistir à sua catalogação num bloco homogéneo de adopção de modelo relativamente à importação de “Outubro”, seguindo as pegadas do Exército Vermelho. Se houve decalques burocráticos da tomada de poder do “partido leninista” quando os sentimentos dominantes na população eram os do anticomunismo, aconteceram insurreições de libertação antinazi que depois se autolegitimaram, com apoio popular, em poderes comunistas, como se verificou ainda, no caso checo, uma re-encenação quase “tal qual” da insurreição russo-bolchevique.
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