Para quem andou na guerra colonial, não é fácil pisar e repisar o tema daquela guerra, da colonização (e da descolonização). Trouxeram-se de lá feridas que cicatrizam mas voltam a abrir. Não falo das feridas físicas nem das marcas deixadas pelos traumas de experiências extremas para se sobreviver. Falo das feridas deixadas por uma memória partilhada por centenas de milhares mas escondida e recalcada porque, socialmente, os arquétipos ideológicos ainda saltam demasiado depressa para poluírem e impossibilitarem a partilha e a catarse. Passados tantos anos depois do fim da guerra colonial, a paz ainda não nos é possível. Porque muitos não querem saber o que foi a guerra. Outros não querem contar o que sabem e não querem enfrentar o que fizeram. Muitos, demasiados, falam da gesta da guerra e da descolonização com a ligeireza oportunista dos papagaios políticos ou como chapéu para pedinchar votos. De uma forma geral, os ex-combatentes ou são desprezados, ou silenciados, ou andam connosco ao colo como heróis retroactivos para pintar o mural do mito patriótico-imperial que só lhes serve para mover o moinho do negacionismo de Abril.
Independentemente do contexto político, os combatentes viveram situações de grupo cujo fito maior era a sobrevivência. O que implicava tudo o que nisso é normal que aconteça. Matava-se para não morrer, vingavam-se os que morriam, depois, matava-se porque se matava. Na guerra, a morte está sempre presente. No mínimo, através do medo de morrer. Mais, nessa dança da morte, a morte era, tinha que ser, hierarquizada. Valorizava-se a nossa vida e a vida dos nossos camaradas, desvalorizava-se a vida dos outros porque a vida deles era a nossa morte. E sabíamos bem que a nossa morte era a vida deles.
Durante duas vezes ainda frequentei os jantares anuais com os ex-combatentes do Batalhão a que pertenci quando fui para a Guiné. Eram rituais de regresso emocional aos tempos de partilha de um grupo metido nos mesmos assados. Todos mais gordos, mais carecas e mais velhos, a recordarem os fados cantados, os copos bebidos, as patuscadas feitas, os engates das pretas, as chalaças e as patifarias benignas. A guerra, a guerra propriamente dita, essa ficava à porta. E não se faziam, não se conseguiam fazer, perguntas sobre como tínhamos ido lá parar. Porque lá estivemos. Predominava o sentimento da amizade solidária construída em situações de sobrevivência. E os abraços eram sempre mais que as palavras. Os risos reprimiam a revolta da estupidez política de termos estado juntos na Guiné. Parecíamos um grupo excursionista de antigos estudantes que haviam estado na Guiné em viagem de finalistas. Mas eu, e os outros (lia-se nos olhos), sabíamos que ali faltavam os que não tinham voltado. E que a cada um de nós faltava uma lasca da juventude despedaçada nas bolanhas daquela terra no cú de Judas. Deixei de aparecer nesses almoços. Porque ia para lá com a ansiedade de um reencontro e voltava com mais solidão, mais estúpido e mais sofridamente revoltado. Outros devem ter sentido o mesmo. Deixaram de se fazer os tais almoços de saudade.
Para quem não andou na guerra, é fácil falar dos crimes da descolonização e do abandono. Imaginar uma descolonização controlada politicamente, faseada, com princípio, meio e fim. Tudo nos eixos e conforme os interesses estabelecidos. Os colonos em paz e com os seus bens salvaguardados. Porque pedem emprestada a coragem e as vidas de outros. É um abuso, mas abusadores existirão sempre.
Para quem andou na guerra, sabe porque é que a descolonização foi o que foi. Porque sabe que as guerras estavam perdidas. Porque sabe que a nossa colonização não permitia descolonização. Porque sabe que o MFA já germinava muito tempo antes de ele existir. Porque sabe que a guerra nunca devia ter existido e durou tempo demais. Porque sabe que a descolonização que existiu foi o mais optimista de todos os cenários criados pelo prolongamento sem nexo da guerra e da presença colonial. Porque sabe que as desgraças que governam as antigas colónias foram criadas pela nossa colonização e pela nossa guerra.
Sei que eu, e outros muitos, muitos mais, vamos ter de conviver com as tiradas dos senhoritos que usaram fraldas depois do 25 de Abril, mais os velhos saudosistas, pedindo, agora, contas pelos erros da descolonização. Não tem importância, esses senhores falam na descolonização porque não querem falar na colonização. Não tem nada que saber. Para eles, a história (com querem ajustar contas) começa em 25 de Abril de 1974.
Neste panorama, sabe bem ouvir outros. Compensa, equilibra.
Recomendo aos interessados no tema que leiam o post lúcido que o Carlos Gil do
Xicuembo lá colocou e onde traz a sua memória de ex-colono branco em Moçambique. E, para os que falam nos crimes da descolonização, aprendam um pouco sobre os crimes da colonização na excelente entrevista publicada hoje no Público (não se consegue aceder a ela na versão on-line) com a historiadora Dalila Mateus a propósito da sua tese de doutoramento sobre a Pide em África.