Como vão distantes os tempos das grandes mudanças interiores que foram corroendo o exterior dessa coisa medrosa e paroquiana que era um Portugal a mudar da canga de Salazar para a de Marcelo Caetano. Uma mudança que se resumiu a mudar nomes às mesmíssimas velharias que arrastavam os cabrestos do atraso, do pudor beato-ímpio, da guerra de morte e estertor imperial como destino fatal, do bolor do afastamento da marcha do mundo. E, nesse quadro, a velha Universidade de Coimbra parecia fadada, como sempre, a representar o papel do atavismo soberbo e ritualista a perpetuar o cotão das capas e batinas das novas, mas nascidas velhas, elites regimentais. Tudo Coimbra tinha para tal fim – um sistema arcaico continuado por lentes que aprenderam com lentes, uma sociedade urbana parada na destrinça medieva entre doutores e povinho, os rituais alienantes das fitas, repúblicas, copos e praxes, um controlo apertado sobre usos, costumes e a natureza permitida aos desvios dos excessos, o recrutamento de vagas de académicos na imensidão parada das grandes e pequenas aristocracias espalhadas nos povoados beirões formatados por párocos, regedores e pequeninos notáveis na pose e na posse. A tradição, a imutabilidade, em que a única irreverência permitida era a do passadismo, destinavam Coimbra, egocentrada na sua vetusta Universidade, a ser o prolongamento mais prolixo de uma elite perpetuadora da ordem fascista-clerical. Até porque não tinha sido impunemente que Salazar e Cerejeira tinham de lá descido, carregados da inteligência manhosa desenvolvida no bafio, para segurarem os fios da ordem no mando e no pensamento autorizado.
Foi preciso que o mundo mais as ideias muito mudassem, tanto que conseguisse esfarelar o anacronismo, para que Coimbra mudasse e ajudasse, e muito, a fazer implodir a claustrofobia coimbrã. E quando a mudança ali chegou, contraditória mas impante, o regime tinha que ter os dias contados, pois quando o regime perdesse Coimbra perdia o país. E quando o vento da rebeldia invadiu Coimbra e dela tomou conta, todas as carapaças vetustas, os hábitos hiper ritualizados, a ossatura conservadora com que a Universidade construiu a sua fortaleza de trono sobre o ser e o saber para conservar o ter, o arcaico tornou-se revolucionário. Algumas “repúblicas” transformaram-se em centros conspirativos, as estudantes fintaram as freiras vigilantes, os rituais académicos passaram a meios de contestação, a concentração geográfica da população universitária um meio eficiente de mobilização e agitação das massas revoltadas, subverteu-se facilmente a longa prática histórica da criatividade da impunidade aristocrática das fantasias de capa e batina. Depois, a brutalidade da resposta desesperada do regime em vista da perspectiva indigesta de “perder Coimbra”, fez o resto. Os anos sessenta do século passado contaminaram Coimbra e, depois de 69, Coimbra foi ganha ao regime pela força da mudança. Como certo e previsto, o regime pouco tempo mais aguentou depois de perder Coimbra. Assim, nesta exacta medida, a “crise académica” em Coimbra, empurrada pela irradiação da rebeldia lisboeta, foi quem tocou a “cabra” no dobre de finados do regime obsoleto e intratável.
A mudança em Coimbra implicou mudanças profundas e paralelas no estar dos seus juvenis académicos transformados em rebeldes com gostos revolucionários. E a maioria deles tinham sido enviados para lá na esperança de prolongamento de pequenos, médios e grandes privilégios. Foi um “virar o mundo de patas para o ar” essa transformação de tantos estudantes destinados à perpetuação das elites de conservação da ordem estabelecida em rebeldes com navalhas apontadas às virilhas da essência do regime. Foi obra. Grande obra.
O livro recentemente editado pela “Afrontamento” e que contem sete entrevistas-conversas com activistas académicos dos anos sessenta em Coimbra (*), é, conforme titulei, um livro inevitável entre as obrigações de leitura. Primeiro, porque impõe a importância da história oral como registo da memória. Segundo, concentra-se num leque plural de activistas de “segunda linha”, logo desinibidos quanto à importância dos protagonismos maiores em fama e permitindo fugas aos estereótipos e mitificações dos balanços políticos. Terceiro, ao abordarem-se os trajectos posteriores dos entrevistados, o registo é enriquecido no conhecimento dos tantos e variados caminhos da esquerda lusitana que se foi construindo desde o estertor do fascismo até os dias actuais. Quarto, beneficia do facto de que quem entrevista foi actriz cúmplice dos acontecimentos vividos e rememoriados.
A não perder a leitura. Porque inevitável, digo eu.
(*) – “Anos Inquietos - Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974)”, Maria Manuela Cruzeiro e Rui Bebiano, Edições Afrontamento. Colectânea de entrevistas com Eliana Gersão, Fernando Martinho, Carlos Baptista, Pio de Abreu, Fátima Saraiva, José Cavalheiro e Luís Januário.
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