A Religião está a ocupar um protagonismo obsessivo nos assuntos e na polémica. Algo que era suposto pertencer à esfera íntima de opção individual e a ser curtida entre pares da mesma crença (ou descrença), tornou-se em assunto social e político predominante, ideológico também, ocupando grande parte da ribalta e agitando a opinião pública. E, neste aspecto, é um retrocesso perante a laicidade republicana, fragilmente adquirida, que devia pautar a discussão dos assuntos públicos. Não temos aí o regresso da “questão religiosa” como questão central das sociedades?
Primeiro que tudo, neste desiderato, há que reconhecer que o fundamentalismo islâmico marcou pontos. E que pontos. Ao transpor para a acção, e para a ameaça e os medos, a sua mescla entre o sagrado e o secular, conseguiu que hoje em dia se discuta muita (demasiada) religião quando se discute política.
Quanto à Igreja Católica, mal curada do apagamento em alguns dos seus privilégios seculares mas não adormecida nem desistente, está a usar habilidosamente este novo protagonismo dos assuntos religiosos, para se afirmar como contraponto e recolher dividendos do contraste com uma prática religiosa concorrente e parada no tempo (a dos “neo-saladinos”). De facto, não é preciso recuar muito no tempo, muito menos ir até à Inquisição, bastando recordar os tempos dos domínios autoritários, ditatoriais e reaccionários do Século XX, para lembrar quanto as sucursais do Vaticano se imiscuíram e sujaram as mãos na construção (ou reconstrução) do domínio ideológico, da manutenção do obscurantismo obediente, do casamento com o poder secular e da pauta e proliferação de índex nos usos e costumes. Aliás, a Igreja Católica, que me lembre, nem uma única vez abriu voluntariamente mão de um único dos seus privilégios adquiridos na promiscuidade Estado-Igreja. Teve foi uma capacidade notável de adaptação camaleónica, mais teórica que prática, aos novos postulados de modernidade democrática, sabendo, como poucas instituições, assobiar para o lado. Basta o exemplo doméstico da forma sibilina como a Igreja Católica mantém, enquanto o Estado não lhe vai á pedra, fingindo não ser nada com ela, o privilégio escandaloso de ter o monopólio (pago pelos contribuintes) da celebração e assistência religiosa nas Forças Armadas e de Segurança bem como no mundo prisional.
A repescagem da “questão religiosa” para questão central, até geopolítica, dos nossos tempos, é, assim, uma vitória, em simetria, do fundamentalismo islâmico e da recuperação de poder de influência do Vaticano. Quanto aos fundamentalistas islâmicos sabe-se o quanto isto lhes convém (e como estarão felizes em terem, talvez com a maior das surpresas, a solidariedade cúmplice da parte da esquerda órfã do marxismo-leninismo mas fiel ao anti-americanismo e ao ódio aos judeus): é a sua janela de oportunidade de colocarem a Jhiad na ordem do dia. Da parte do Vaticano, a oportunidade nova (riquíssima em termos políticos) de aparecerem associados à luz e ao progresso civilizacional. E um aspecto, talvez o mais perverso e ínvio, da neo-afirmação católica seja a defesa do medo e auto-censura perante a susceptibilidade por parte dos muçulmanos relapsos ao direito á crítica e à heresia. Difundindo o “respeito” pelo religioso, celebrando a necessidade de regresso ao esplendor da religiosidade, cimentando o seu estatuto de tabu, a Igreja Católica procura beneficiar da rejeição civilizacional aos excessos islâmicos e às suas abencerragens, revertendo para seu favor um novo e inesperado protagonismo da esfera religiosa. Por via dos seus “irmãos muçulmanos”, a Igreja Católica não está a conseguir o maior e mais trapaceiro de todos os milagres – transmutar-se como símbolo da Tolerância, Democracia, Direitos e Liberdades? Além de que, na querela semi-surda católico-muçulmana, até parece que, por um passe de mágica, as opções religiosas se passaram a esgotar nestas duas religiões monoteístas. As religiões alternativas, incluindo as politeístas ou animistas, mais os ateus, parece que desapareceram do mapa e das mentes, em que o palco ficou reduzido a servir apenas dois actores cúmplices embora aparentemente zangados – Jesus e Mahomé (e, neste aspecto, eles até nem se cansam em falar em Abraão, o seu profeta em comunhão de bens espirituais).
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