Cada etapa da história tem o seu tempo e só pode ser analisada em função desse tempo.
Mas existem fases bárbaras, tão bárbaras, que mesmo atendendo à circunstância, aos usos e costumes, à cultura, às relações de domínio e de sobrevivência, nos custam incorporar na marcha da história e na evolução da civilização.
Mesmo usando a moderação da distância, a
Inquisição e a
Escravatura, por exemplo, custam a engolir. Como as barbáries nazis e bolchevique (tão quase gémeas entre si), estas mais próximas de nós e que ainda estendem tentáculos até aos nossos dias na influência ideológica, nos paradigmas de suporte e até em poderes sobreviventes (periféricos mas reais).
A
Escravatura, pela duração e pela brutalidade do negacionismo absoluto do ser humano, sempre me impressionou. E estremece-me saber que,
durante seis séculos!, nós, os portugueses, fomos esclavagistas e especialistas na matéria.
Em visitas a África, especialmente em Cabo Verde (na Cidade Velha perto da cidade da Praia) e em Angola (a sul de Luanda frente a Mussulo), visitei, sempre com um misto de espanto e de vergonha, sinais sobreviventes dos mercados de escravos construídos e geridos pelos portugueses. Olhando aqueles sinais vivos de memória, eu tentava entender
aquilo mas não conseguia fazê-lo em paz. Fiz essas visitas na companhia de amigos africanos. Olhando as pedras, as grades, os armazéns e os outros sinais, eu não conseguia evitar baixar os olhos para não encarar de frente os olhares dos meus amigos, sentindo-me como que culpado por aquilo que ali se tinha passado entre os meus antepassados e os daqueles africanos de hoje que me acompanhavam nas viagens. No entanto, eu
não conseguia ver, nos rostos dos meus amigos africanos, rancor ou acusação.
Numa das vezes, resolvi interrogar directamente o meu companheiro, atrapalhando as palavras. A resposta veio-me calma e quase soletrada:
não, isto não foi só culpa vossa, fomos nós, os africanos, que começámos e vos ensinámos. Fiquei a matutar. E ele tinha meia razão (uma parte era condescendência por amizade, é claro). De facto, a escravatura era prática habitual e culturalizada na maior parte das tribos africanas antes da nossa chegada. Se havia as chamadas razias em que os escravos eram arrebanhados, metidos em cativeiro e arrastados para os centros negreiros, muito do comércio de escravos era feito em negócio directo com os chefes das tribos que os vendiam aos portugueses (e a outros) como mercadoria de sua posse. O que nós fizemos foi globalizar e intensificar esse mercado, exponenciando os seus lucros, sobretudo após as ocupações nas Américas. Aliás, quando a escravatura foi oficialmente abolida (embora até ao início do século XX ela se mantivesse em franjas de mercado paralelo) pelos portugueses, em atraso muitos anos do abolicionismo inglês e sob pressão deste, foi uma carga de trabalhos (provocando várias expedições com essa finalidade) convencer muitos dos chefes tribais africanos do fim daquele negócio em que assentava muito do seu poderio. Até porque as novas formas de exploração colonial que sucederam à escravatura (trabalho forçado, trabalho contratado) não se distanciavam assim tanto da brutalidade exploradora mas retiravam fonte importante de receitas aos chefes tribais.
Apesar de alguma relativização, ainda agora não deixa de me impressionar quando leio documentos históricos sobre a natureza, a prática e as finalidades do esclavagismo. Com mais ou menos responsáveis, aquilo foi uma mancha negra e enorme na construção das civilizações modernas e na sobrevivência de muita da geopolítica que nos achega até hoje. E percebe-se, pois então, o embaraço, pelas culpas repartidas, que o tema ainda hoje causa quando discutido e aprofundado quer por europeus ou por africanos (seja ao nível político, seja ao nível académico).