É de uma grandeza surpreendente o resultado da queda do comunismo, particularmente no que se refere à sede do império, a URSS. E são enormes as vagas de decepção, de orgulho ferido e de nostalgia que com o tempo, e a par do enorme alívio dos que conseguiam viver em comunismo e aspirar à liberdade, se juntam às cicatrizes daquela hecatombe política e sobretudo social. No fundo, a grande surpresa comunista foi que a queda do regime que construiu foi o facto mais tranquilo da sua prática, a qual assentou sobretudo nas violências da guerra e da prisão e que criou, além do hábito de viver na pobreza quando não na miséria, várias gerações de conformistas e de religiosos políticos. Acresce que o que se seguiu foi, na maior parte dos sítios, coisas feias de se verem - uma recriação capitalista assente sobretudo na pilhagem, e que a par de legião de deserdados e abandonados ficou nas mãos de políticos de carreira e de gangsters. Esta realidade violentíssima em termos sociais gera em termos humanos uma multiplicidade dramática que como fonte de conhecimento da decepção humana é inesgotável enquanto fonte de saber.
Svetlana Aleksievitch, uma conceituada escritora e jornalista bielorussa faz com "O Fim do Homem Soviético" ("Porto Editora"), livro com que ganhou em França o prémio para o melhor livro publicado em 2013, uma monumental recolha de depoimentos orais de vários ex-soviéticos (com vários posicionamentos sobre o fenómeno da queda do comunismo) que traçam um enorme fresco da grande decepção de uma multidão de cidadãos que habituados a viverem sob o medo, a pobreza e a norma, de repente viram-se no papel de excluídos e sem as âncoras construídas para sobreviverem e sem margem de aspiração a autonomia e liberdade.
Sendo pelas pessoas e para as pessoas que se faz a política e se constroem regimes, com ou sem revolução, o conhecimento dos sofrimentos dos homens e mulheres que viveram sob a opressão e a miséria do comunismo e depois foram castigados quando do seu fim (em vez da liberdade e da prosperidade que muitos imaginaram que sucederia ao fim do comunismo), o testemunho destas pessoas, as suas vozes de tristeza e sofrimento e por vezes nostalgia, é o melhor retrato que se pode fazer do regime deposto por evaporação. Ou seja, a demonstração de como os soviéticos (e os outros cidadãos dos países da órbita da URSS) pagaram com fome, prisão e tortura não só enquanto o comunismo foi a ordem interna nos seus países mas também nos tempos prolongados do pós-comunismo.
Chamam-lhe agora, para aguçar o marketing, "mestre do neo-realismo" (e de quantos outros o mesmo não se lhes podia chamar?) mas Rossellini saía do cânone desse movimento (melhor seria chamarem-lhe "mestre do realismo"). Veio até de uma certa contemporização com o fascismo (como outros, nomeadamente Fellini) enquanto foi regime e de uma visão católica do mundo, a qual aliás nunca perdeu, longe portanto de aproximações ao materialismo histórico (preferiu, antes, aproximar-se de Ingrid Bergman, gosto que só se lhe pode gabar). Mas os grandes talentos ultrapassam cânones, sabe-se. Rossellini é prova disso. Tanto assim que não gabamos as escolhas aos que (em Lisboa ou no Porto) passarem ao lado de ver ou rever a obra deste grande homem do cinema.
Um romance, como tudo na vida, pode morrer de fartura. Mesmo em tempo de penúria, acrescente-se. É o caso deste último de Inês Pedrosa ("Desamparo", D. Quixote). E se o talento literário espreita sempre no virar de página de cada capítulo, a obra, no seu conjunto desconjuntado, é uma congestão permanente de personagens e situações, em que tudo o que é relevante em termos de encontros e desencontros de afectos e situações se desvanece sob os escombros dos excessos, incoerências e pulos nos cenários e enquadramentos. Foi uma pena que Inês Pedrosa não se desse ao trabalho ou tido tempo para podar o seu projecto, decantá-lo de lugares comuns e extrair alguns efeitos de gosto mais que duvidoso. Assim, como está, é mais uma confusão que um romance, resultando numa inutilidade o tempo investido em o tentar desbravar pois isso só amplia a inutilidade do esforço. A esquecer, portanto.
Foi prenda de natal que agora li. E, para espanto, constatei que não conhecia o autor que afinal é mais que reconhecido internacionalmente, tem obra vasta em vários domínios (novela e literatura de viagens) e com várias obras editadas em Portugal. E dizem as boas línguas que a atribuição do Nobel não lhe deve tardar. O "Último Comboio Para a Zona Verde" (quetzal) de Paul Theroux é o relato assombroso da epopeia do autor (com setenta anos de idade, meteu-se numa viagem pelo sudoeste de África em "transportes públicos" e boleias), começando no Cabo e subindo até Angola (o objectivo era subir até ao Cairo mas perante a experiência angolana desistiu e ficou-se por ali, não passando de Luanda). O retrato do confronto com a realidade angolana (até porque é feito em contacto com gentes e locais comuns) é um dos retratos mais demolidores sobre o desastre africano, sendo particularmente gritante o de Angola. Poucos livros me permitiram acrescentar à minha vivência particular naquele país uma impressão tão profunda e tão próxima do vómito. Além de que, em termos de escrita, está ao nível do melhor que li no género. E tão viciante que iniciada a leitura, sentindo-nos a viajar com Theroux na mesma viatura a cair dos bocados e a pernoitar na mesma aldeia africana perdida na savana, o único desejo que se vai tornando cada vez mais obsessivo é chegar, chegar ao fim. Magnífico!
O único hino que respeito e canto com gosto é o do Piçarra. Por isso posso dizer que não sou muito de hinos. Quando soube do hino dedicado ao preso 44 temi que acabasse em "às armas" ou coisa assim estimulando uma arremetida guerreira da etnia da Covilhã saudosa dos tempos das vivendas desenhadas e projectadas pelo traço genial do filósofo político com mais livros vendidos (perdão, comprados) no nosso país. Mas não, as etnias políticas que compõem a tribo socrática é muito pacífica e convencional, delega toda a violência no advogado de defesa.
Estes dois enormes intelectuais franceses marcaram a fornada da minha juventude. Empenhados e heterodoxos, geniais no pensamento e na escrita, acresce que também a luta antifascista portuguesa muito lhe deve de empenho solidário na denúncia dos crimes e outros desmandos da ditadura. No entanto, a forma empenhada como eles denunciavam, em pé de igualdade com a denúncia dos abusos praticados pela "direita mundial" (quer os do imperialismo americano assim como os abusos da força pelos israelitas), os crimes do domínio soviético cometidos numa parte importante do mundo, levavam a que, para os ortodoxos filo-soviéticos, Sartre e Beauvoir fossem vistos como intelectuais a quem em vez de os saudar se devia, perante eles, assobiar para o lado, evitando-os. No entanto, a prevenção a que o casal de intelectuais era votado quer pelos próceres da ditadura como pelo antifascismo comunista não evitava a sua profunda penetração entre as leituras dos jovens portugueses (os que eram estudantes, como é óbvio) que se iniciavam na vida cultural da década de 60 do século passado. Não fui excepção e também eu li muito Sartre nos meus verdes anos. E eram leituras muito estimulantes que tinham o condão de, sempre o entendendo muito parcialmente, desembocarem, mais do que em respostas (como acontecia com as cartilhas difundidas pelo leninismo doméstico), numa série multiplicante de perguntas.
O actual momento editorial em que se está a difundir, não sei porquê. várias obras de Simone Beauvoir, levou-me a descobrir (e a encantar-me) a obra da companheira de Sartre, obra esta que na década de sessenta me tinha passado ao lado. Um dos lados singulares desta descoberta é encontrar uma escritora que, comparando-a com Sartre (acto dispensável mas inevitável), surge como, pese embora ser uma pensadora muito menos densa, uma narradora de maior poder literário e ter uma escrita mais intemporal e mais impressiva. Além de que ler SB é uma etapa indispensável também para entender Sartre. Isto porque enquanto Sartre pensava sobretudo o mundo a SB olhava sobretudo as pessoas no mundo, particularmente os círculos que habitavam (que eram bastante vastos). E SB fazia essa observação muito bem e como uma lucidez apurada pois que o "contracto" de coabitação com Sartre era particularmente elaborado e depurado preventivamente de muitas das maleitas geradas nos hábitos e na sobrecarga de presenças, tudo enquanto prática de feminismo radical mas sereno e despojado de retórica programática. Sendo um casal que viveu junto durante muitas décadas, viviam em habitações separadas, encontrando-se ora na casa de um ora na casa do outro, quando dormiam juntos faziam-no em quartos separados, quando viajavam alugavam sempre quartos diferentes nos hotéis onde pernoitavam, não se eximiam a terem e desenvolverem os seus amores e paixões em paralelo à vida afectiva comum, não permitindo a penetração do ciúme. E de tal forma aquele estilo de vida livre em comum foi adoptado que Simone retrata como um dos sinais mais marcantes do início da demência de Sartre na entrada da sua velhice uma vez este se lhe ter dirigido tratando-a por "esposa". E, no entanto, apesar deste "contracto de relação amorosa" (ou, talvez antes, graças a ele), mantendo até ao fim os procedimentos estabelecidos, Simone viveu toda a profunda crise de velhice de Sartre e apoiou-o intensamente com o desvelo da mulher profundamente apaixonada.
Um dia destes, numa consulta a um dos médicos especialistas que me assistem e que partilha comigo o gosto pela leitura (de tal forma que os primeiros dez minutos das consultas com ele são consumidos em troca de impressões sobre as últimas edições, ficando os atendimentos clínicos a servirem de complemento), calhou levar comigo um livro de uma edição recente da Beauvoir. Isso serviu de pretexto para ele me confessar que tendo, em jovem, lido todo o Sartre, nunca lera Beauvoir, revelação que mostrava toda a semelhança com a minha história de relacionamento com a obra do célebre casal. Sendo nós, médico e doente, da mesma geração, com vivências idênticas (as do caldo das lutas estudantis da década de 60, eu em Lisboa e Porto, ele em Coimbra), aprofundando a questão, e tendo em conta que se os rapazes de então leram o máximo de Sartre e nada ou quase nada de Beauvoir, as raparigas que liam (as poucas que liam) leram algum Sartre mas devoraram muito mais Simone de Beauvoir e nela se inspiraram para estruturar o seu feminismo e os decorrentes estilos de vida. O caso não merece sondagem mas tenho que este exemplo de opções de leituras e alinhamentos terá muito a ver com a forma como os géneros se alinharam na formatação da sociedade portuguesa em termos de vivência homem-mulher.
Embalado pela leitura de Simone de Beauvoir fui repescar uma edição anterior do seu diário "A Cerimónia do Adeus" (Livros Cotovia) e fiquei profundamente impressionado. O livrinho é a transposição de um diário referente aos últimos anos de vida de Sartre e constitui uma abordagem frontal e vivíssima da decadência de um dos intelectuais mais marcantes do século XX. É uma peregrinação pela decadência dos corpos versus teimosia da inte...rvenção cívica, política e filosófica. Ou seja, a vida no pior e no melhor. E, apesar do pacto de vida estabelecida entre Sartre e Beauvoir, de caracter radicalmente não hierárquico, com um culto absoluto pela igualdade integrada na vida de um casal, os últimos anos da vida e da obra de Sartre são sempre olhados pelo olhar do afecto. Nunca, o que só aconteceria se Beauvoir fosse uma feminista de pacotilha e alguidar, um recitar de regras e programas.
Nota: O livro refere a passagem, nada entusiástica, do casal por Portugal durante o PREC.
"Mal-entendido em Moscovo", o livro de Simone de Beauvoir agora editado pela Quetzal é um esboço que não se destinava a ser editado, tendo inclusive sido retirado de uma obra maior onde estava inserido. Mas só se pode saudar a decisão de editar postumamente este livro da Beauvoir, embora a sua leitura tenha de ter em conta que, tratando-se de um esboço bruto, deve ser entendido mais como literatura induzida. e, situando-se o leitor nos parâmetros próprios da especificidade da obra, a fruição resulta magnifica perante a demonstração do enorme talento e capacidade de escrita que se espraiam neste livro. Quanto ao conteúdo, Beauvoir cruza dois desgastes, o de uma longa ligação amorosa e do desencanto perante a evidência do falhanço da construção do comunismo. Tudo em prosa da melhor.
Em princípio, tudo o que se publique, sendo bem escrito, sobre a questão feminina (no passado ou no presente tanto faz pois que as semelhanças, para nossa vergonha, ainda são muitas) nunca é demais. E o apelo simbólico do "dia da mulher" sempre alicia os editores e livreiros a meterem obras cá fora dedicadas aos percursos das mulheres. Na fornada deste ano, ressaltam as edições dos livros de Isabel do Carmo ("Histórias que as mulheres contam", D. Quixote), uma recolha de vários casos de mulheres que em várias circunstâncias sofreram a opressão de uma sociedade marcada pelo machismo salazarista, e o livro de Sofia Branco ("As mulheres e a guerra colonial", a esfera dos livros), cujo título diz tudo sobre a intenção da obra. No entanto, pese embora a excelência das boas intenções das autoras, ambos os resultados, literariamente falando, são desastrosos. Obras caóticas, sem fio de orientação nem organização temática, não passam de mantas de retalhos muito mal costuradas. Ele, o feminismo, não merecia livros literariamente tão maus.
Ronaldo Menéndez (autor que infelizmente não foi ainda editado em Portugal, apesar de ter uma obra já com alguma dimensão e ter sido galardoado com vários prémios) pertence a uma espécie particular de escritores cubanos: críticos profundos - alguns deles na banda da radicalidade - do sistema político cubano, emigraram legalmente (no caso de Menéndez, para Espanha) mas voltam a Cuba e voltam a sair da ilha quando entendem e ali conservam casa... e família. Como contrapartida, cumprem um acordo tácito de não participarem em actividades políticas que tenham como alvo o governo cubano. Neste grupo sui generis destacam-se os escritores Leonel Pandura (este largamente editado em Portugal) e Ronaldo Menéndez.
O excelente livro "Rojo Aceituna" (Editora "Páginas de Pluma", Espanha) de Menéndez é ainda um projecto particularmente singular por ser realizado nas condições especiais atrás referidas: é um livro de viagens (com a aproximação à realidade que só é possível quando as viagens são feitas na condição de "mochilero") cujo itinerário escolhido foi um conjunto de países onde se encontra instalado alguma forma de resquício do que sobra hoje do sistema comunista ou aparentado (na América Latina e na Ásia). O que Menéndez encontra são os restos sombrios (muitos deles já transfigurados sob a forma do capitalismo mais cruel) de uma utopia que se tornou criminosa por via do impulso psicótico dos "engenheiros de almas" apostados num projecto totalitário de transformação social transportando o paradoxo de desvalorizar por completo as pessoas que teoricamente seriam os beneficiários das transformações sociais e políticas.
O livro de Menéndez, muito bem escrito e mantendo sempre uma linha alta de tensão com descoberta e aventura, tem ainda o enorme interesse de na abordagem a estas sociedades decadentes e terminais os contactos e diálogos (ou seja, as fontes de informação) são estabelecidos não com personalidades mas sim (só possível obter-se por um escritor "mochilero") com as pessoas comuns e desposicionadas de qualquer perspectiva de relevo relativamente aos seus testemunhos.
Nem sempre me é fácil recordar com exactidão onde estava numa qualquer data certa umas décadas atrás. Mas sei nitidamente onde andava há exactamente quarenta anos. Sim, andava por uns baldios junto de um quartel militar onde assisti em directo e ao vivo a uma tentativa de golpe militar, colaborando, ao meu modo e segundo as instruções, na sua derrota (o que, diga-se, nem exigiu muito trabalho). Viver por dentro uma revolução, que nunca é uma avenida decorada com roseiras mansas, é uma experiência inigualável e que nos impõe uma interiorização da política de grau cem. Se o golpe de 11 de Março tem triunfado, os riachos de sangue que se seguiriam transformariam para sempre a posterior democracia portuguesa numa convivência cheia de cicatrizes de ódio. Assim, passados nomeadamente os excessos por borracheira que se seguiram, as marcas são hoje de outro tipo, as dos que, há muito apagados os excessos, tentam porfiadamente anular até ao último sinal essa vontade danada de um povo a querer ser dono do seu destino. Hoje, sem golpe, a reacção mora em Belém e em São Bento. Mas o que eles demoraram para aqui chegarem. Reste-nos esse consolo na memória de há quarenta anos atrás.
Custa dizer "canta Chico, deixa lá os livros" mas não há forma de o evitar sem incumprir o dever de sinceridade. E assim aqui fica: "O Irmão Alemão" (Chico Buarque de Holanda, "Campo das letras") é uma bambochata , ou seja, um livro sem ponta por onde se pegue. Por sinal tinha lido há uns tempos atrás uma magnífica reportagem no "Público" (julgo que na sua revista de domingo) sobre o tema deste livro e fiquei então fascinado não só pela história como pela forma como ela era abordada. E daí fiquei ansioso à espera da edição do romance. A frustração foi estrondosa e só uma incapacidade literária profunda justifica que um tema tão aliciante descambe numa chatice atroz. Canta, Chico.
Quando parecia que o mais importante e esclarecedor sobre a revolução portuguesa já tinha sido dito e escrito eis que um livro ("Spínola e a Revolução", Francisco Bairrão Ruivo, Bertrand Editora, o qual é uma adaptação de uma tese de doutoramento do autor) nos cai nas mãos e surpreende pelos novos ângulos de enquadramento e análise do fenómeno revolucionário português recuando histórica e politicamente aos tempos do marcelismo. E à primeira vista, nem sequer a centralidade da análise girar à volta de Spínola é, parece-nos, um factor mobilizador para a sua leitura. Mas ultrapassadas as resistências, rapidamente a leitura se torna estimulante e nos sentimos como que a revisitar com gosto e curiosidade os tempos dos grandes conflitos revolucionários na parte substancial dos grandes dilemas revolucionários que giraram à volta do projecto de poder de Spínola (assente numa transição não revolucionária para um marcelismo manso) e as fortes oposições que encontrou com deslizamentos vários de aliados e inimigos. E, assim, o foco em Spínola que poderia prenunciar uma romagem a um dinossauro do passado português transforma-se num centro vivo da génese e incubadora das grandes tensões iniciais da revolução de Abril. Acrescente-se que o magnífico trabalho de investigação histórica que dá lastro ao livro é ainda plasmado numa também magnífica (porque leve e cativante) prosa.
"Leviatã", o último filme de Andrey Zvyagintsev, é o grande monumento ao cinema que se salienta entre tudo quanto, neste momento, nos é oferecido nas nossas salas. Passar-se-lhe ao lado é como morar junto de um excelente museu e estar-se deformado pela rotina preguiçosa de nunca ali entrar. O filme, bem na sequência da poderosa tradição russa do realismo, é não só um fresco impressionante acerca da Rússia pós-soviética nas suas várias vertentes "putinescas" como assenta num argumento envolvendo afectos e paixões que, mesmo que o pano de fundo da realidade não fosse aquele, seria sempre um óptimo suporte para um grande filme. Se juntarmos a tudo isto as interpretações assombrosas e a paisagem do norte russo que fala mais que todas as palavras, julgamos que o desafio não necessitará de mais indicações e condimentos para aguçar apetites de todos que gostam de cinema.
Quanto à enorme polémica e engulhos que "Leviatã" suscitou no poder político e cultural russo e na igreja ortodoxa daquela potência, o único comentário que suscita é que Andrey Zvyagintsev só lhes pode estar agradecido pela furiosa e involuntária publicidade. Os poderes russos poderão fazer tudo para boicotarem o filme e o cobrirem de lama, mas como todas as obras de arte incómodas, ao boicote e à censura de hoje segue-se normalmente o sucesso de amanhã.
Nota: Fui ver o filme no domingo passado à noite e, sem que estivesse a contar, tive direito ao brinde da "apresentação do filme" pelo conhecido José Milhazes. Depois de uma patacoadas genéricas sem substância suficiente que justificasse a sua presença ali (logo ele que se confessou como uma pessoa muito preguiçosa para ir ao cinema e que só viu o "Leviatã" numa descarga pirata pela internet), ainda se deu ao luxo de bolsar umas patetices ridículas entre uma eventual semelhança de situação política e social entre a Rússia e Portugal. Francamente, não havia necessidade deste castigo como preço suplementar a somar ao custo do bilhete.
Entende-se agora melhor a forma desabrida como Passos Coelho desembestou contra os últimos resultados eleitorais na Grécia através de uma ingerência provocatória própria de criançola das jotas que após um curto período de inserção social através de uma licenciatura e empregos de proveta, se viu alcandorado ao lugar de primeiro-ministro, o que o levou a pensar-se como bafejado para sempre pela protecção da divina providência. É que todos os "defeitos gregos" que integram o estereótipo negativista do país europeu mais castigado socialmente pela espada da austeridade (fuga aos impostos, sornice, oportunismo, encosto ao Estado e às cunhas) Passos Coelho verbera-os porque se sente, ao dissecar o estereótipo anti-grego, a ver-se ao espelho. Da negação da semelhança entre a imagem construída sobre o "outro" e a sua própria natureza de cidadão relapso e videirinho até à exibição de xenofobia de pequena potência só foi preciso o pequeno passo de sendeiro. Passo curto, curtinho.
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