Terça-feira, 30 de Agosto de 2005

A PERSISTÊNCIA DO EXPEDIENTE KRUTCHOV (1)

Kruschphone[1].jpg

Uma certa áurea, condescendente historica e politicamente, resguarda Krutchov na escolha entre os “bons” e os “maus” dos Senhores do Kremlin (excepto, principalmente, os que vêm nele a origem de todos os males, atribuindo-lhe o início dos “desvios” e da “decadência” para com a tradição estalinista da firmeza pura, dura e assassina e que iniciaram a contaminação do PCUS a partir do seu máximo escalão de mando). O resguardo de Krutchov é notoriamente evidente entre os persistentes admiradores de Gorbi (o feiticeiro incompetente) e que colocam este na galeria de um seu “continuador atrasado”. Afinal, a mesma áurea relativizante que, em contraponto a Brejnev e ao medíocre Tchernenko (considerados os “recuperadores ortodoxos”), descortina um “projecto” descontínuo de pretensa regeneração, humanização, racionalização e até democratização da URSS, nas obras da mítica trindade simpática constituída por Krutchov-Andropov-Gorbatchov (os da “obra boa mas interrompida e inacabada”).

Krutchov deu o seu golpe (um golpe clássico e com todos os matadores – com o apoio dos militares então subordinados ao conspirador Jukov, pistolas metidas nas pastas de documentos na reunião do Politburo em que Beria tentou tomar o poder e acabou nas masmorras da “sua” Lubianka, depois pelo fuzilamento secreto e sem julgamento público do mesmo Béria) e legitimou-o no célebre XX Congresso de 1956. Aí, surpreendendo o mundo e metendo os comunistas em estado de choque, encontrou os bodes expiatórios do falhanço na construção do socialismo e da malvadez assassina que eram, já então, as marcas genéticas do poder soviético, em Estaline (falecido em 1953) e em Béria (o último polícia-mor de Estaline e rival de Krutchov na sucessão no mando supremo do PCUS e da URSS).

Com Krutchov e o seu XX Congresso, o antes idolatrado Estaline passou a “besta negra” do comunismo (o homem de todos os crimes e todas as malfeitorias). Estaline passou a Vilão Mor, o Estalinismo transformou-se na expressão máxima da degenerescência paranóica do poder soviético. Depois, afastados do palco os aliados do golpe (Jukov, Molotov, Malenkov, etc.), o Estalinismo ficou consagrado como a mancha negra de uma temporal perversão soviética (ideologicamente sustentado pelo apregoado regresso á pureza do leninismo, ou seja, exactamente a mesma alavanca propagandística que iria suportar a primeira fase da renovação gorbatchoviana) e a prática do consulado de Krutchov como a regeneração do Partido e do Sistema. O que não deixou de ser um espanto de maquiavelismo quando Krutchov, ele mesmo, foi, em grande parte do mando de Estaline, um dos mais boçais, criminosos e sabujos executantes da política do “Pai dos Povos”, nomeadamente na repressão e dizimação dos seus patrícios ucranianos. O mal comunista passou a ter um limite temporal e datado, degenerado mas segregável e superável – o do consulado do poder ditatorial de Estaline. Morto e repudiado Estaline (e, com ele, o Estalinismo, enquanto praxis exclusivamente associada ao exercício de uma tirania específica e paranóica por Um Tirano, entretanto exorcizado), o ideal e a ilusão comunista estavam prontas para regressarem à pureza dos bons e generosos ideais e projectos.

Com Krutchov - que viria depois a ser a “besta negra” justificativa da “rectificação brejneviana” (*) e o ódio de estimação nos desvarios psicóticos dos maoístas, albaneses e polpotianos (recusando-se a limparem as mãos do sangue) e que viram nele o Sumo Revisionista - ao concentrar-se o odioso comunista (sobretudo a sua componente totalitária e criminal) em Estaline e no Estalinismo, ofereceu-se uma nova palavra para a retórica regenedora de afirmação simétrica nas referências ao tronco do leninismo e aos seus ramos, folhas, flores e frutos.

Pela distinção semântica entre Comunismo e Estalinismo, passou a haver duas etiquetas diferentes (aparentemente em conflito) para o Comunismo – o Comunismo Mau (=Estalinismo) e o Comunismo Bom (os que conseguissem sacudir as mãos da obra de Estaline, assobiando ou não para o lado). Vistas bem as coisas, Krutchov acabou por confluir com o velho sonho da propaganda trotsquista – concentrar o odioso soviético em Estaline (sabendo-se tão bem que Trotski faria diferente do mesmo), regenerar o legado leninista e o mito da Revolução de Outubro. O certo é que é depois do XX Congresso que o trotsquismo se relança entre parte da juventude europeia e os focos de atracção radicalistas e dissonantes nos costumes, embora mantendo a sua matriz grupuscular e a tendência fatal para as cisões e as recomposições perpétuas e que são a sua marca degenerativa que o incapacita para criar consistentemente um Partido expressivo e perene onde quer que seja. O que demonstra que o mais significante no trotsquismo, enquanto expressão partidária, é ser um estalinismo incompetente.

A partir do lançamento propagandístico do Mal Estalinista, exceptuando os cultores da provocação e da excentricidade, associado que foi a taras não descartáveis, ninguém quis continuar a ser estalinista, passando este chavão a ser considerado um insulto. A vergonha substituíu o orgulho, no caso – uma vergonha útil, mesmo entre aqueles que conservam e cultivam o mesmo modelo de partido construído e imposto por Estaline e desejam uma sociedade como a por ele construída e é a sua razão de luta. Mais, o estalinismo, enquanto conceito negativista, é de enorme utilidade, sobretudo para os estalinistas (como o foi para o estalinista Krutchov) – constitui a “arca do mal” para onde se iludem as transferências dos erros, dos desvios e dos crimes (exorcizados em abstracto e condenados em termos genéricos) e de onde se sai com as mãos purificadas pela água benta da redenção igualitária e generosa da prática do bem revolucionário. E como já ninguém é assumidamente estalinista, pode-se praticar Estaline no pensamento e na acção desde que o seu nome não seja invocado, porque, na propaganda pelo menos, do comunismo e das suas variantes (incluindo a trotsquista que tem a vantagem iconográfica de ser guiada pelo pensamento de um Mártir assassinado às ordens de Estaline), só sobrou comunismo bom. Aprecie-se como se apreciar a obra de Krutchov, um elogio dele julgo ser passível de unanimidade – foi um notável mestre do marketing na política e na propaganda.

(*) – Sobre o papel de Mikhail Suslov na continuidade conspiradora do Kremlin, ler post seguinte dedicado a esta figura do cume do “estalinismo sem Estaline”.













Publicado por João Tunes às 12:27
Link do post
Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

j.tunes@sapo.pt


. 4 seguidores

Pesquisar neste blog

Maio 2015

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

Posts recentes

Nas cavernas da arqueolog...

O eterno Rossellini.

Um esforço desamparado

Pelas entranhas pútridas ...

O hino

Sartre & Beauvoir, Beauvo...

Os últimos anos de Sartre...

Muito talento em obra pós...

Feminismo e livros

Viajando pela agonia do c...

Arquivos

Maio 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Junho 2013

Março 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

Fevereiro 2004

Links:

blogs SAPO