Uma certa áurea, condescendente historica e politicamente, resguarda Krutchov na escolha entre os bons e os maus dos Senhores do Kremlin (excepto, principalmente, os que vêm nele a origem de todos os males, atribuindo-lhe o início dos desvios e da decadência para com a tradição estalinista da
firmeza pura, dura e assassina e que iniciaram a contaminação do PCUS a partir do seu máximo escalão de mando). O resguardo de Krutchov é notoriamente evidente entre os persistentes admiradores de
Gorbi (o feiticeiro incompetente) e que colocam este na galeria de um seu continuador atrasado. Afinal, a mesma áurea
relativizante que, em contraponto a Brejnev e ao medíocre Tchernenko (considerados os recuperadores ortodoxos), descortina um projecto descontínuo de pretensa regeneração, humanização, racionalização e até democratização da URSS, nas obras da mítica trindade simpática constituída por Krutchov-Andropov-Gorbatchov (os da obra boa mas interrompida e inacabada).
Krutchov deu o seu golpe (um golpe clássico e com todos os matadores com o apoio dos militares então subordinados ao conspirador Jukov, pistolas metidas nas pastas de documentos na reunião do Politburo em que Beria tentou tomar o poder e acabou nas masmorras da sua Lubianka, depois pelo fuzilamento secreto e sem julgamento público do mesmo Béria) e legitimou-o no célebre XX Congresso de 1956. Aí, surpreendendo o mundo e metendo os comunistas em estado de choque, encontrou os bodes expiatórios do falhanço na construção do socialismo e da malvadez assassina que eram, já então, as marcas genéticas do poder soviético, em Estaline (falecido em 1953) e em Béria (o último polícia-mor de Estaline e rival de Krutchov na sucessão no mando supremo do PCUS e da URSS).
Com Krutchov e o seu XX Congresso, o antes idolatrado Estaline passou a besta negra do comunismo (o homem de todos os crimes e todas as malfeitorias). Estaline passou a Vilão Mor, o Estalinismo transformou-se na expressão máxima da degenerescência paranóica do poder soviético. Depois, afastados do palco os aliados do golpe (Jukov, Molotov, Malenkov, etc.), o Estalinismo ficou consagrado como a mancha negra de uma temporal perversão soviética (ideologicamente sustentado pelo apregoado regresso á pureza do leninismo, ou seja, exactamente a mesma alavanca propagandística que iria suportar a primeira fase da renovação gorbatchoviana) e a prática do consulado de Krutchov como a regeneração do Partido e do Sistema. O que não deixou de ser um espanto de maquiavelismo quando Krutchov, ele mesmo, foi, em grande parte do mando de Estaline, um dos mais boçais, criminosos e sabujos executantes da política do Pai dos Povos, nomeadamente na repressão e dizimação dos seus patrícios ucranianos. O mal comunista passou a ter um limite temporal e datado, degenerado mas segregável e superável o do consulado do poder ditatorial de Estaline. Morto e repudiado Estaline (e, com ele, o Estalinismo, enquanto praxis exclusivamente associada ao exercício de uma tirania específica e paranóica por
Um Tirano, entretanto exorcizado), o ideal e a ilusão comunista estavam prontas para regressarem à pureza dos bons e generosos ideais e projectos.
Com Krutchov - que viria depois a ser a besta negra justificativa da rectificação brejneviana (*) e o ódio de estimação nos desvarios psicóticos dos maoístas, albaneses e polpotianos (recusando-se a limparem as mãos do sangue) e que viram nele o Sumo Revisionista - ao concentrar-se o odioso comunista (sobretudo a sua componente totalitária e criminal) em Estaline e no Estalinismo, ofereceu-se uma nova palavra para a retórica regenedora de afirmação simétrica nas referências ao tronco do leninismo e aos seus ramos, folhas, flores e frutos.
Pela distinção semântica entre
Comunismo e
Estalinismo, passou a haver duas etiquetas diferentes (aparentemente em conflito) para o Comunismo o
Comunismo Mau (=
Estalinismo) e o
Comunismo Bom (os que conseguissem sacudir as mãos da obra de Estaline, assobiando ou não para o lado). Vistas bem as coisas, Krutchov acabou por confluir com o velho sonho da propaganda trotsquista concentrar o odioso soviético em Estaline (sabendo-se tão bem que Trotski faria diferente do mesmo), regenerar o legado leninista e o mito da Revolução de Outubro. O certo é que é depois do XX Congresso que o trotsquismo se relança entre parte da juventude europeia e os focos de atracção radicalistas e dissonantes nos costumes, embora mantendo a sua matriz grupuscular e a tendência fatal para as cisões e as recomposições perpétuas e que são a sua marca degenerativa que o incapacita para criar consistentemente um Partido expressivo e perene onde quer que seja. O que demonstra que o mais significante no
trotsquismo, enquanto expressão partidária, é ser um
estalinismo incompetente.
A partir do lançamento propagandístico do
Mal Estalinista, exceptuando os cultores da provocação e da excentricidade, associado que foi a taras não descartáveis, ninguém quis continuar a ser estalinista, passando este chavão a ser considerado um insulto. A vergonha substituíu o orgulho, no caso uma vergonha útil, mesmo entre aqueles que conservam e cultivam o mesmo modelo de partido construído e imposto por Estaline e desejam uma sociedade como a por ele construída e é a sua razão de luta. Mais, o estalinismo, enquanto conceito negativista, é de enorme utilidade, sobretudo para os estalinistas (como o foi para o estalinista Krutchov) constitui a arca do mal para onde se iludem as transferências dos erros, dos desvios e dos crimes (exorcizados em abstracto e condenados em termos genéricos) e de onde se sai com as mãos purificadas pela água benta da redenção igualitária e generosa da prática do bem revolucionário. E como já ninguém é assumidamente estalinista, pode-se praticar Estaline no pensamento e na acção desde que o seu nome não seja invocado, porque, na propaganda pelo menos, do comunismo e das suas variantes (incluindo a trotsquista que tem a vantagem iconográfica de ser guiada pelo pensamento de um Mártir assassinado às ordens de Estaline), só sobrou
comunismo bom. Aprecie-se como se apreciar a obra de Krutchov, um elogio dele julgo ser passível de unanimidade foi um notável mestre do marketing na política e na propaganda.
(*) Sobre o papel de Mikhail Suslov na continuidade conspiradora do Kremlin, ler post seguinte dedicado a esta figura do cume do estalinismo sem Estaline.