Terça-feira, 13 de Novembro de 2007

ORALIDADE E HISTÓRIA (2)

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Demonstrando uma invulgar e generosa disponibilidade para blogo-dialogar, consumindo tempo do seu precioso tempo, a historiadora Irene Pimentel teceu vários comentários neste e neste posts, à volta do seu recente livro publicado sobre a História da PIDE. Transcrevo o último esclarecimento da sua posição quanto à escolha de fontes de consulta pelos historiadores:  

 

Pegando na «vida difícil do historiador», parte das dificuldades com que ele se confronta têm a ver com as sucessivas escolhas a que ele é obrigado, sempre com a preocupação de não falsificar o que se passou, embora saiba que nunca se chega ao que «realmente se passou», como foi outrora a convicção dos positivistas. Escolhe os limites cronológicos e temáticos, bem como escolha das fontes, entre outras selecções. Escolhemos uma, em vez de outra, extractos de uma em vez de outros extractos A própria citação, a que se recorre não constitui uma prova, dado que é quase sempre possível fornecer uma citação contrária àquela que se acaba de escolher. Por outro lado, a narrativa do «vivido» coloca ainda um problema de escrita, pois que, ao colocar o depoimento por escrito, o historiador não deixa de escolher as palavras para fazer ouvir a testemunha. De certa forma, ao citar, o historiador estabelece-se em saber do outro e, nesse sentido, priva a testemunha da sua própria palavra, como diz Michel de Certeau.
A História oral, expressão que vem do inglês, fundada sobre o inquérito oral, sugere a pretensa superioridade do «oral», sobre os arquivos escritos, na medida em que a palavra seria dada aos ignorados pela História e aos «de baixo». Não tenho dúvidas nenhumas sobre a importância do «testemunho oral» - o recurso a esta fonte só se coloca na história contemporânea, do contemporâneo próximo, tais como, entre outras, as fontes cinematográficas ou televisivas -, nomeadamente por ser aquele que nos dá melhor um contexto e retira do silêncio e do esquecimento pormenores que de outra forma não são. À sua maneira, a memória de uma testemunha dá conta das transformações sócio-históricas à escala de uma vida, mas tem as suas próprias imperfeições, pois é selectiva, assimila as convenções sociais que incitam, ou não, a embelezar, recalca coisas consideradas anódinas e chega mesmo a censurá-las. A memória é condicionada, pelo esquecimento, pela transformação e pela selecção das lembranças.
Eu própria recorri a muitos testemunhos, não expressamente recolhidos por mim, mas por outras pessoas, nomeadamente por Manuela Cruzeiro (testemunhos de Eugénia Varela Gomes, Francisco da Costa Gomes e Vasco Gonçalves), bem como a muitas entrevistas e livros testemunhais, mesmo sabendo que estes são construídas ou reconstruídas. Qualquer fonte é aliás reconstruída, quer pelo historiador, quer pela testemunha, além de ser reconstruída, através da duração, que separa o momento rememorado do momento da narrativa. O historiador Jean-Jacques Becker referiu o handicap do a posteriori, daquilo que é construído posteriormente ao evento descrito. Se o historiador pode corrigir um erro material, apresentado pela testemunha, já não o pode fazê-lo, relativamente aos sentimentos e às emoções expressas a posteriori, as quais pertencem mais à época em que é dado o testemunho, do que ao momento contado pela testemunha. Por outro lado, a memória das testemunhas, no que se relaciona com o estabelecimento de uma data, de um local e de um facto é menos fiável do que, de um modo geral, os documentos, embora escape, nestes últimos, o «vivido», o ambiente e o contexto, necessários à compreensão e que são transmitidos pelos actores dos acontecimentos.
É certo que também as fontes escritas não deixam de ser construídas, mas diferem das fontes orais, no sentido de não serem destinadas ao historiador, nem produzidas por ele. Ao questionar a testemunha, o historiador fá-lo em função de um saber prévio, de uma narrativa de eventos que ele já construiu de antemão e à qual faltam certos encadeamentos e cadeias. Saber e narrativa essas que a testemunha desconhece e ignora.
Como disse, tive de proceder a escolhas metodológicas e, neste estudo específico, optei por não utilizar a entrevista. Por diversas razões já apontadas e por outra, que já agora refiro, mas que não caberia realçar numa dissertação de doutoramento:
- a já referida profusão de fontes a que se teve acesso;
- a existência de muitos testemunhos escritos
- e, sobretudo, da impossibilidade de entrevistar, paralelamente aos ex-presos políticos e opositores ao regime que foram alvo da PIDE/DGS, um número suficientemente grande de ex-elementos desta polícia, que se recusaram a prestar depoimento.

A estas razões, acrescenta-se outra, muitíssimo subjectiva: o facto de eu própria ter um «envolvimento» com a PIDE, salvo seja, na medida em que fui politicamente activa e o medo de ser presa e de não saber como me comportaria sempre me perseguiu, nos últimos anos da ditadura. À partida, tinha toda uma carga subjectiva e tudo menos neutra relativamente ao objecto de estudo. Sabendo que não há neutralidade, acho que o investigador deve fazer tudo para tender a ela e tive de me precaver contra as minhas próprias emoções, não contaminando as testemunhas. Tive de defender-me, no caso dos «carrascos», da total ausência de empatia e, no caso das «vítimas», da completa simpatia. Aqui está uma «confissão», neste texto que já vai longo.

 

Nota: Ainda a propósito do mesmo tema, recomendo a leitura deste post de Rui Bebiano.

 

Publicado por João Tunes às 13:06
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