A importância e o valor enorme e insofismável de Álvaro Cunhal na história portuguesa e na do movimento comunista internacional não se coaduna com a forma como o centenário do seu nascimento tem sido celebrado: objecto de beatificação por parte dos seus presumidos discípulos e cumprimentado gentilmente com vénia pelos restantes sectores políticos (incluindo a direita). Além, é claro, dos que não perderam ângulo de curiosidade pública perante a ilusão do desvendar de um ou outro pormenor do mistério da personagem, para venderem um livrinho de ocasião. É que a beatificação de Cunhal que está feita no PCP não joga nem com a aclamada ausência interna de culto (e de que, teoricamente, Cunhal, enquanto dirigente do PCP, nunca permitiu que lhe fosse dedicada) nem com a concepção marxista do papel das personalidades na história. Assim como, nos sectores mais amplos da sociedade portuguesa, mal se entende a reverência simpática para com a efeméride (melhor entendível se suspeitarmos de um certo cinismo na forma como o anticomunismo respira de alívio por o homenageado já não conviver entre os vivos), dada a natureza essencialmente polémica da figura em causa e das paixões ideológicas, políticas e sociais que arrastou consigo. Neste quadro, é da maior relevância, podendo até falar-se de serviço público cultural, a colectânea de depoimentos de diversos académicos da área historiográfica editada pela “Tinta da China” e seguindo vários enfoques sobre o papel e a importância de Cunhal.
Como bem diz José Neves (coordenador da colectânea), “Nos retratos de Álvaro Cunhal que têm sido traçados por ocasião do centenário do seu nascimento, o percurso de uma vida tende a ser encerrado na imagem de uma estátua que deveríamos contemplar, simplesmente injuriando ou idolatrando a sua figura.”. Este livrinho, rico e polifónico nas abordagens, é uma pedrada no charco do unanimismo beato com que é uso e costume entre nós tratar dos mortos, venerando-os ou silenciando-os, o que são formas convergentes de os reenterrar. Quem conheceu Cunhal ou dele tem memória política viva sabe que o que ele mais naturalmente suscita, merecendo-o e a todos dando proveito cultural, é debate e polémica, nunca o tributo do monolito. Mumificá-lo em forma de mito para o passear em andor de procissão, podendo parecer uma preceito leninista se houver referência à tétrica inspiração da prática contumaz da URSS e arredores de embalsamarem os líderes falecidos, é, no fundo, uma ofensa intelectual póstuma a Álvaro Cunhal.
Como se a esquerda portuguesa tivesse uma tradição de unidade e luta, contasse com um largo cardápio de consensos e vitórias contra o centro e a direita e utilizasse - por rotina - a discussão aberta e fraternal para se definir o caminho comum que cultiva a construção da inexploração, cada vez que há atrevimentos de alguém ou alguns criticarem esta ou aquela acção de luta, cai o carmo e a trindade com acusação de cometimento de crime de fraticídio e de jogatanas com o inimigo. Quem se atreveu a criticar as decisões da CGTP em questões ligadas à manifestação do último sábado já apanhou pela medida grande em tudo quanto é sítio de culto da unicidade. Esta expressão unicitária, velha e conhecida contaminação pela doença do sectarismo de esquerda, exprime, afinal, uma posição conservadora e auto-justificativa por parte das vanguardas no poder do contrapoder. O “não fazer o jogo do inimigo” é a matraca silenciadora da divergência, entendida esta como sendo um acto de genuína traição. Quando, afinal, o que todos sabemos (os candidatos a silenciadores ou a silenciados) é que a via unicitária não fez outra coisa que impedir a abertura de espaços de debate e de pólos de decisão democrática em que as vias de luta e de transformação sejam encontradas e decididas com os interessados e pelos interessados, sem amos nem controleiros. A esquerda perdeu eficácia na luta e no caminho para o poder por debater pouco ou nada e substituir o contraponto e a divergência pelo unitarismo centralista. É inútil persistir numa via de obediência aos sectários. Decididamente, o futuro da esquerda não passa por aí.
Um fim-de-semana dedicado ao(s) "totalitarismo(s)". Em mera coincidência, calhou ir ao cinema ver o inevitável "Hannah Arendt" intercalado na leitura, com impaciência perante as inevitáveis mas arreliadoras interrupções, do deslumbrante "Tudo Passa" de Vassili Grossman (acabado de editar pela D. Quixote). Ou seja, um fim-de-semana à volta de duas geniais tentativas de pensar o "mal radical" (ou "mal extremo" como Arendt acabou por corrigir). Mas se o filme de von Trotta é sobretudo uma reflexão sobre os limites e tropeços das asas libertas do pensamento livre - bem exemplificado com a sugestão da forma como Eichman, no seu julgamento, conseguiu confundir a genial filósofa, mas defendendo-se no filme os riscos (os riscos bons) das ruturas com o dogmatismo -, o espantoso livro de Grossman (para mim, o grande acontecimento literário-político dos últimos cinco anos), passando para o outro lado extremo do leque totalitário, é de uma clareza desarmante que só o silêncio dos censores ideológicos pode derrotar.
Muitas vezes os espíritos livres, aqueles que se recusam a conviver com o dogmatismo, se esquecem dos legados de outros que, antes, pensaram e escreveram para alimentar a vontade imanente de liberdade. Entre estes, estão seguramente Arendt e Grossman. A primeira ensinando-nos que vale a pena ser livre até para se errar no processo de tentativas próprio da procura da essência e da verdade. O segundo conseguiu o feito espantodo (e isso, dentro do seu país e há meio século atrás) de tornar claríssima a essência das razões do "mal" mais escondido e silenciado.
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