Ontem, sexta-feira,voltei a plantar-me numa manifestação frente ao Palácio de Belém passados que foram 37 (trinta e sete) anos desde a única vez anterior em que me metera num cometimento igual. Durante a passagem do interregno entre estas duas manifestações naquele local (uma duração bastante maior que a idade de grande parte dos manifestantes de ontem), houve tempo suficiente para uma revolução murchar (em parte por culpa dos jardineiros inaptos nas podas e apodrecendo raízes por excesso de rega) e a assistirmos e a sofrermos a mais medonha ofensiva reaccionária contra os trabalhadores e o povo ganhar embalagem de condução incompetente e em velocidade louca. Resumidamente, isto diz muito ou quase tudo sobre a curva política desgraçada que as últimas décadas nos fez cair em cima. Mas a diferença fica melhor vincada se lembrar que a manifestação de 1975 culminou com uma ida ao varandim do palácio que dá para a praça de todo o Conselho da Revolução e com um discurso do Presidente da República em pessoa (Costa Gomes, então General) resumindo para a multidão (para o povo) o que aquele Conselho tratara e concluíra, enquanto desta vez os conselheiros limitaram-se a sair de Belém em alta velocidade e ocultos em potentes viaturas, enquanto Sua Excelência o presidencial Cavaco devia estar a recolher-se aos aposentos privados para disputa de recato com a sua esposa, ao mesmo tempo que um funcionário de nível hierárquico deslavado lia, aos jornalistas, um comunicado protocolar. Nada disto surpreende, nem sequer a diferença sublinhada que chega a fazer duvidar, numa leitura apressada, que se trate do mesmo país em que se deram as duas manifestações. Curado assim, por vício de uso e abuso de banhos com baldes de água fria, da capacidade de me surpreender com os trambolhões da vida política e dos seus desatinos, resta-me supor vir a saber, em altura própria, como se vão passar as coisas na próxima vez em que triplicar o meu uso do direito a manifestar-me frente à casa do poder presidencial. A ver vamos. Mas que não demore outro hiato de 37 anos para ainda me apanharem cá como testemunha e manifestante contumaz.
Era inevitável. De cada vez que vem a lume os crimes nazi-franquistas em Espanha (durante a guerra civil e as décadas em que Franco continuou a fuzilar, prender e torturar alimentando a sua vingança), os colaboracionistas com a ditadura franquista (por interesses próprios e directos ou aqueles que amam ou desculpam Franco por amizade ideológica) tiram as matanças de Paracuellos (ocorridos em Madrid cinco meses após início da guerra e sob eminência da conquista da capital espanhola pela coligação fascista) da cartola. E sempre que se procurou desqualificar Santiago Carrillo tenta-se a sua criminalização por via do seu envolvimento (sempre empolado) em Paracuellos. Assim, aos reaccionários branqueadores de Franco e do franquismo, Paracuellos cola-se aos lábios e aos dedos de escrita sempre que se vejam na eminência de ressaltarem os monstruosos crimes do lado franquista. Na morte de Santiago Carrillo, não faltaram, como se previa, os cânticos em honra das vítimas de Paracuellos e a reedição da versão que aponta Carrillo como o responsável pelos acontecimentos. Evidentemente que Paracuellos existiu e os acontecimentos que aí ocorreram são condenáveis à luz da ética do combate político e militar. E tendo Paracuellos existido (o que não invalida que não tenha tido a dimensão monstruosa dos crimes franquistas, muitos deles cometidos a frio e após a vitória total na contenda fraticida), enquanto episódio sangrento da guerra civil de Espanha, não deve ser contornado na narrativa sobre aqueles trágicos acontecimentos que mancharam de sangue a pátria nossa vizinha. Mas há que saber e entender o que se passou, o seu contexto e encontrar os responsáveis de verdade (onde Carrillo não estando isento de Paracuellos foi figura secundária dentro da responsabilização). Neste sentido, é da maior oportunidade ler-se este artigo assinado por um conjunto de historiadores.
Curiosa a sentença que condenou três “violentos” da manifestação de sábado passado:
Significará que após extinção do “período de suspensão dos autos” os indivíduos podem regressar aos “actos violentos em manifestações públicas e desportivas”? Ou, simplesmente, como se tratou de um julgamento sumário e rapidíssimo, o senhor doutor juiz de turno estava debilitado em termos de inspiração e sensatez?
As pessoas mudam. Mas o povo permanece o mesmo. Nunca igual ao que foi e ao que será. Prever as mudanças de um povo será, talvez, o teste mais arriscado em qualquer curso de futurologia. O melhor mesmo, então, é não o tentar. Em Maio de 74 foi o que nos lembramos. Uns por lá terem estado, outros porque a imagem existe para não ser apagada. No último sábado, o povo, o mesmo mas mudado pela permanente mudança, repetiu a graça e arregaçou as mangas da cidadania. Só que, por mérito indiscutível, fazendo agora exigências cívicas quando em 74 saira para festejar agradecido uma conquista que a tropa lhe havia oferecido. Após décadas em que o povo português parecia estar civicamente adormecido e demissionário - com representações fugazes de despertares pueris para cumprir agendas e sob comando orgânico e orquestrado dos funcionários e burocratas dos aparelhos do contra-poder enquadrado e organizado -, eis que o povo, o mesmo e sempre diferente povo, fez, num sábado ao sol de Setembro, melhor que aquilo que havia feito em Maio de 74. O que dá espanto sobretudo àqueles que nunca imaginaram tal ultrapassagem e que talvez sejam a maioria. Mas o quadro, o da dialéctica deste povo, ficará mais completo se nos lembrarmos que este povo, o mesmo mas diferente povo, também, umas décadas antes de Maio de 74, se havia manifestado assim:
É este caminhar já feito (sim, o muito que andámos para se chegar ao 15 Set) que nos dá um pó de esperança sobre o que o futuro nos reserva enquanto povo que se redescobre e grita quando acorda. Sabendo-se que o futuro não passa de um permanente recomeçar sempre num ponto diferente. Para onde? Até onde? Caminhemos para saber.
Nota: O comentário da Joana levou-me a precisar melhor a ideia que quiz aqui partilhar, acrescentando o último parágrafo ao texto.
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