Num novo documento repescado no Passado/Presente dos autos de proibição de livros pela Censura do Estado Novo, de que restam uns admiradores de votos em concursos televisivos, parece-me uma excelente metáfora à forma como a mulher é considerada numa trincheira do referendo em campanha.
O relatório de proibição, assinado por um Capitão com avença de leitor-censor e datado de 1967, trata de um livro com tradução e edição brasileira, enviado pelos CTT (o que demonstra como os Correios no tempo do salazarismo também desempenhavam função de vigilância e controlo) para apreciação da Censura. O nome da obra chama-se “A MULHER” e mereceu este despacho clarividente do Capitão-Censor Borges Ferreira:
“É um livro científico, que todas as mulheres deviam ler, mas, para isso, devia ser tirado o capítulo XXXVII. É este capítulo que, a meu ver, estraga o livro e o torna impróprio de entrar nas nossas casas. Sou, portanto, de parecer, salvo melhor opinião, que o livro deve ser proibido de circular.”
Ficamos sem saber o que constaria do tal capítulo XXXVII que “estragou” o livro. Mas será necessário ter muita imaginação para supor que matéria trataria? O que não deixa de nos fazer pensar na similitude no que hoje se ouve e se traduz do essencial da propaganda do NÃO e que podia ser dito assim: “ As mulheres são uma maravilha e fonte de vida, desde que não se estraguem a usar o capítulo XXXVII. Se o fizerem, proíbam-se, por serem impróprias de entrarem em nossas casas, devendo ser entregues ao Código Penal”.
Fernando Santos, em artes de treinador na bancada do NÃO no último “Prós e Contras” da RTP, transparecendo uma respeitável e convincente sinceridade na expressão das suas convicções pessoais, demonstrou e desmontou a arquitectura montada pela campanha da sua causa. Campanha esta que é uma articulação sofisticada e razoavelmente conseguida de ocultação das razões essenciais dos motivadores pelo NÃO.
De facto, Fernando Santos, um católico praticante e publicamente confesso, afirmou-se pelos dogmas da Igreja quanto à sexualidade e à maternidade, colocando-se abertamente fora do debate deste referendo, na exacta medida em que a sua visão pecaminosa-criminalizante é muito mais restritiva que a lei actual na repressão ao aborto. Ele o disse, puniria os abortos actualmente permitidos (em caso de violação e de má formação do feto) e só seria benevolente nas situações em que se previsse que o parto pusesse em causa a vida da mãe. Mas, escolhendo fora desta escolha referendária, Fernando Santos dá corpo à campanha. Porque para conter uma modernidade que ameace os seus respeitáveis dogmas (pensando “para pior, já basta assim”), ele, não lhe bastando a coerência com a sua fé, desconfiando da eficácia do seu proseletismo, quer que o Código Penal sirva de andaime que imponha a toda a sociedade as suas crença sobre a vida. Como o fazem os párocos tradicionalistas que, onde encontram ambiente cultural favorável, continuam a pregar contra o contexto da actual lei e continuam a defender a sexualidade reprodutiva, condenando o preservativo e as outras formas anti-conceptivas, a masturbação, o sexo “não casto”, o calor dos corpos livres.
No entanto, quem aparece a modelar a propaganda da campanha do NÃO, pautando-lhes os discursos e os argumentos, é outra coisa e muito diferente. Os rostos e vozes dos pregadores do NÃO publicamente expostos são sobretudo de médicos e juristas, católicos é claro, que argumentam diferente, muito diferente. Defendem o planeamento familiar, a contracepção, inclusive afirmam-se contra a penalização do aborto. Atribuem ao SNS uma obrigação gigantesca de cobertura e apoio perfeito e maravilhoso para a gravidez e os partos.
O que une a “retaguarda” do NÃO, a sua essência comandada a partir das Sés, igrejas e capelas, misógina, anti-sexo, a da mulher procriadora, a esta camada culta, fina, pública e envernizada que ocupa os debates e os tempos de antena? O jogo de enganos de dois discursos e duas medidas. E uma enorme capacidade táctica da dissimulação. Cruamente dito: sobretudo a hipocrisia. Praticada por um bando de propaganda
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