A efeméride dos 70 anos decorridos sobre a abertura do Campo de Concentração do Tarrafal (na localidade de Chão Bom, Ilha de Santiago, Cabo Verde) podia e devia servir para desmistificar os logros do branqueamento na história, mitos e outros silêncios associados na escrita e reescrita da memória. Num esforço para que o passado histórico não se associe a uma recriação da propaganda e não sobreviva como registo exclusivo de meias verdades, silêncios e heroificações trabalhadas.
- O Campo de Concentração do Tarrafal funcionou em três períodos: de
- O modelo da concepção e da implantação do Campo do Tarrafal, desmentindo os pruridos dos que dizem que o salazarismo “não foi um fascismo”, foi copiado dos modelos nazis e foi, na escala portuguesa, um decalque de Dachau ou Buchenwald. Ou seja, locais de extermínio para minorias activistas recalcitrantes à aceitação da ditadura. A par da PIDE, da Legião, da Censura e da Mocidade Portuguesa, o Campo foi um sinal da tendência copista dos modelos repressivos e de enquadramento do nazi-fascismo.
- Embora a maioria dos prisioneiros na primeira fase do funcionamento do Campo tenham sido militantes comunistas, o universo prisional foi mais vasto, incluindo anarquistas, sindicalistas-revolucionários, republicanos democratas, espanhóis derrotados na Guerra Civil e alemães anti-nazis. E, entre os 32 prisioneiros que perderam a vida no Campo, além do então Secretário-Geral do PCP (Bento Gonçalves), inclui-se o principal líder sindicalista-revolucionário, Mário Castelhano.
- Como em qualquer universo prisional concentracionário, o Campo não foi só uma revelação, da parte de todos os prisioneiros, de comportamento heróico, exemplar e destemido perante uma repressão processada em condições limite para a força da resistência humana. Ao lado dos mártires impolutos, casos existiram de presos que se passaram para o lado dos carrascos ou a eles, em forma clara ou mitigada, deram mais colaboração que solidariedade aos seus companheiros. “Passagens” para o lado dos carcereiros deram-se não só na primeira fase como na segunda em que lá penaram combatentes africanos (por exemplo, a facção guineense que alinhou com a PIDE na acção de posterior infiltração no PAIGC e que culminou com o assassinato de Amílcar Cabral, foi “trabalhada” no Tarrafal). Igualmente há uma marca extremamente negativa do comportamento generalizado dos prisioneiros europeus do Campo e que muito se tenta fazer esquecer - a do seu racismo anti-africano manifestado quer para com os militares angolanos que ali fizeram serviço de guarda quer para com a população caboverdiana do meio envolvente.
- Pelo isolamento, pelas condições de internamento, pelo humano desejo de sobrevivência, pela dinâmica das evoluções políticas e ideológicas, com muitas fracturas pelo meio, o Campo foi uma enorme fonte de intensidade de debate e alinhamentos e realinhamentos que marcaram o posicionamento político de muitos dos prisioneiros, nomeadamente entre os comunistas. Ali, nomeadamente, ganhou expressão considerável a facção da “política de transição” (que admitia, nela apostando, uma via pacífica de transição do fascismo para a democracia) que levou ao ostracismo violento de vários dirigentes destacados do PCP (caso de José de Sousa, que consumou ainda no campo a ruptura) e uma mancha curricular sobre outros. Por exemplo, a mitigação do culto de Bento Gonçalves pelo PCP e que ainda hoje perdura, deve-se às “manchas” que são atribuídas às posições políticas que ele adoptou no campo (e a denúncia dos seus “erros” nunca teve expressão muito evidente porque, entretanto, não sobreviveu às agruras do Campo e assim nunca representou um “perigo político” para a linha cunhalista). Mas outros dirigentes comunistas sobreviventes (Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, etc) haveriam de “pagar” mais tarde pelo ferrete dos “erros” das posições defendidas no Tarrafal. Pese embora o viciado e vicioso jogo de história-propaganda que o Tarrafal continua a alimentar na memória permitida e autorizada do PCP (leiam-se as observações de Pacheco Pereira ao livro recentemente lançado pelas Edições Avante), em que a “história oficial” é a que retrata aquele partido como uma organização monolítica e sem falhas nem contradições, seguindo sempre, como uma procissão militante, o itinerário político-partidário de Cunhal. Razão bastante para o PCP continuar a querer que os historiadores andem bem longe dos seus arquivos.
OS MEUS BLOGS ANTERIORES:
Bota Acima (no blogger.br) (Setembro 2003 / Fevereiro 2004) - já web-apagado pelo servidor.
Bota Acima (Fevereiro 2004 a Novembro 2004)
Água Lisa 1 (Setembro 2004 a Fevereiro 2005)
Água Lisa 2 (Fevereiro 2005 a Junho 2005)
Água Lisa 3 (Junho 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 4 (Outubro 2005 a Dezembro 2005)
Água Lisa 5 (Dezembro 2005 a Março 2006)