Há dois domingos, António Barreto publicou, no Público, uma carta de 1974, que disse ser de Rosa Coutinho a Agostinho Neto. Na carta, Rosa Coutinho, depois de "reunião secreta com os camaradas do PCP", ordenava ao presidente do MPLA aterrorizar "os brancos [portugueses], matando, pilhando e incendiando." E exortava: "Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos." Apresento os portugueses de que falo: Barreto é uma voz respeitada; Rosa Coutinho era o alto-comissário em Angola; e o PCP está no Parlamento. Não falo de gente menor e, no entanto, a extraordinária carta não teve eco. Com duas excepções: uma crónica minha, no DN (eu dizia que ela era falsa), e um debate na blogosfera. O que deveria ter acontecido: um sobressalto nacional para tirar a coisa a limpo. Diz-se que o governador português e um partido português exortaram um grupo estrangeiro a aterrorizar portugueses - e nada! Ou eu tenho razão, e a carta é falsa, ou este silêncio é doentio.
Nota 1: Admiti que, na sua crónica semanal de ontem no “Público”, António Barreto se retratasse ou confessasse ter sido acometido de uma ingenuidade indesculpável para com o seu estatuto de comentador público. Não o fez, antes passou adiante da lama com que, uma semana antes, sujara a escrita. Assim, confessou-se como sendo um colaborador de canalhices disposto a pescar nas águas turvas dos canalhas ou dos ingénuos dispostos a engolir canalhices (veja-se, na blogosfera, a par dos que denunciaram e verberaram a patranha, os que engoliram a trafulhice e lhe deram eco de crédito, espalhando a lama). Resta-me condená-lo, a António Barreto, à única censura de efeitos práticos que está ao meu alcance: deixar de o ler.
Nota 2: Sobre o mesmo assunto, ver aqui e aqui. Para sossego de tantos crédulos de contumaz inocência que por aí abundam (um deles, aventou para Rosa Coutinho a hipótese de levá-lo a Haia para ser julgado como "criminoso de guerra" no TPI, sendo secundado por quem propôs que o homem fosse despojado do posto de Almirante e expulso das Forças Armadas), declaro solenemente que a "carta" do segundo post é mera ficção.
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Adenda: É natural que alguns coloquem a questão de o Almirante Rosa Coutinho não aparecer publicamente a desmentir a atoarda, defendendo a sua honra. Por aquilo que escreveu João Vasconcelos Costa, invocando um conhecimento pessoal próximo (*), Rosa Coutinho, além de já ser uma pessoa idosa, está doente e impossibilitado de reagir. O que coloca uma questão ainda mais escabrosa neste lamentável episódio: porquê quanto a uma inventada carta “datada” de 1974, se esperar que passassem mais de trinta anos após a sua publicação num jornal na então África do Sul do “apartheid” (leia-se o que, na “caixa de comentários” deste post, diz Augusto) e quando o seu atribuído autor está corroído pela velhice e pela doença e, assim, incapacitado de responder e defender-se?
(*) – “Tenho por dever também defender outra pessoa atacada por AB e que, por razões de saúde, já não o pode fazer, o almirante Rosa Coutinho, pessoa que conheço muito bem e por quem tenho estima, embora discordando de muitas das suas posições políticas.”, escreveu João Vasconcelos Costa.
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